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terça-feira, 8 de setembro de 2020

A herança do ilhéu

O pai morreu. Os filhos foram chegando, de perto e de longe, para dividirem a dor entre eles e a mãe. Após o enterro seguiu-se um almoço familiar com a viúva, os dez irmãos e alguns netos. Eram muitas as suas memórias e cinco irmãos mais velhos voltaram a recordar o dia “importante” em que o pai comprara o grande cofre, “a burra”, como o povo lhe chamava, e lhe ouviram aquela frase que o pai iria repetir todos os anos: “Quando eu morrer, a vossa herança estará dentro deste cofre”. 

Terminado o almoço, o cofre foi aberto com solenidade, pela mãe, na presença dos filhos. Foi simples e rápido: o cofre continha dez grandes sobrescritos com o nome de cada um deles, e outro, menor, dirigido à mulher. Este apenas continha uma carta de agradecimento e despedida, na qual também a incumbia de reter, dar ou distribuir o pouco que juntara, como bem entendesse, mas aconselhava-a a não se desprender de nada do que era seu por direito. Comovidos, os filhos reconheceram que cada um   recebia a “sua herança”, sendo todas elas diferentes e à medida de cada um. Ali estavam todos os recibos do que o pai gastara com os estudos de cada um: as viagens de ida e vinda da ilha para o continente, as propinas da universidade (nem todos ficaram em Lisboa, Porto ou Coimbra), a acomodação e alimentação, o traje académico, livros e material específico de cada curso, a mesada (bem curta) para “alfinetes e algum café, despesas com saúde e algum imprevisto como roupa, transportes, visitas de estudo, etc. Ali estava tudo, a mudança de curso da Adelaide, a operação ao apêndice do Joaquim (que incluiu a deslocação da mãe a Lisboa para o acompanhar até aos primeiros dias de convalescença), o vestido comprido para o baile de fim de curso da Joana... e, claro, as cartas de fim de curso.

Todos sorriram e ficaram enternecidos com tal herança. No total, representava uma quantia avultada, entre escudos e euros, e, sobretudo, muito trabalho do pai e economias da mãe que conseguia disciplinar os caprichos familiares. Uma expressão do Bruno passou a ser popular entre irmãos e irmãs: “O meu novo fato velho”, por vir do pai ou irmão mais velho”, ou “O meu velho fato novo!”, por ter vindo do alfaiate, oferecido pelo padrinho, mas já ter muitos anos de uso. Sim que fatos novos... só os do pai e da mãe, desde que os filhos mais velhos deixaram de usar roupas infantis.

Após a Missa de sétimo dia, a família dirigiu-se à sacristia para cumprimentar e agradecer ao celebrante os cuidados que tivera com o doente e contaram-lhe o “episódio da herança”. O sacerdote sorriu-se e recordou o que ouvira do pai deles a esse propósito, em uma das vezes que o visitara. Tentara imitar o comportamento divino, imaginando Deus como um bom pai, que enviou à terra o seu Filho para ensinar aos homens como se devem comportar para Lhe agradar. Por isso, procurara incutir boas virtudes nos filhos e dar-lhes os estudos necessários à profissão de cada um. Deixara-lhes a herança em vida, com trabalho e bastante sacrifício dele e sua mulher, para que todos os filhos tivessem a liberdade de seguir o caminho que escolhessem, mas morria feliz e orgulhoso dos filhos e da mulher. Ela fora a corajosa companheira dos seus sonhos; eles eram esses sonhos feitos realidade. A generosidade do casal começara por nunca ter fechado a porta da vida aqueles maravilhosos filhos que Deus lhes dera. Era essa a primeira condição para oferecer felicidade, mas só temporal. A felicidade eterna dependeria do modo como eles aproveitassem o que ele, pai António, e Ele, Pai Deus, lhes tinham oferecido. Essa, a herança eterna, seria a verdadeiramente valiosa.

Isabel Vasco Costa


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