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domingo, 1 de setembro de 2019

Sínodo sobre Amazónia: Vaticano entreabre a porta a ordenação de homens casados e ministério para mulheres


Manifestação indígena em Brasília: as populações indígenas devem ser escutadas em todos os âmbitos, defende o documento preparatório do Sínodo dos Bispos católicos. Foto © Guilherme Cavalli/Conselho Indigenista Brasileiro

Abertura à ideia de ordenar homens casados e de um ministério para as mulheres. Estas são duas das propostas, no âmbito da organização eclesial católica, que se podem ler – ainda apenas como sugestões – no documento de trabalho preparatório da assembleia especial do Sínodo dos Bispos sobre a Amazónia, que decorrerá entre 6 e 27 de Outubro.
O texto propõe que se debata a ordenação de anciãos, “preferentemente indígenas, respeitadas e aceites pela sua comunidade, ainda que tenham já uma família constituída e estável, com a finalidade de assegurar os sacramentos que acompanhem e sustentem a vida cristã”. Apresentada como uma das várias “sugestões” no capítulo da organização das comunidades, a medida é uma das que propõe “novos ministérios para responder de modo mais eficaz às necessidades dos povos amazónicos”.
A ideia de ordenar “viri provati”, na expressão latina, homens maduros e provados, já tinha sido apontada pelo Papa Francisco em outras ocasiões, mesmo reafirmando o compromisso da Igreja Católica com o celibato. Esta não será, no entanto, a primeira excepção católica à regra do celibato: já antes foram admitidos padres anglicanos, que eram casados, ​​ao serviço da Igreja Católica, depois de terem deixado a Comunhão Anglicana; e há várias igrejas católicas orientais (melquitas ou maronitas, por exemplo), que aceita a ordenação de homens casados.
“As comunidades têm dificuldade em celebrar frequentemente a eucaristia” por causa da falta de padres, verifica o documento. “A Igreja vive da eucaristia” e a eucaristia edifica a Igreja. Por isso se pede que, em vez de deixar as comunidades sem eucaristia, se mudem os critérios para selecionar e preparar os ministros autorizados para a celebrar”, justifica o texto.

“Identificar o ministério a conferir às mulheres”
As mulheres “pedem para recuperar o espaço” que lhes foi dado por Jesus” e devem ter “garantida a sua liderança”, diz o texto. Foto © António Marujo

No documento há, entretanto, várias outras sugestões que apontam para mais mudanças de paradigma no catolicismo. Logo no ponto seguinte, sugere-se (seguindo a versão italiana) “identificar o tipo de ministério oficial que pode ser conferido às mulheres, tomando em conta o papel central que hoje desempenham na Igreja amazónica” (na versão espanhola, há um erro de concordância; além disso, registe-se que, estando cerca de 60 por cento da floresta da Amazónia situada em território brasileiro, o documento ainda não tem versão oficial em português disponível).
Neste ponto, a questão pode ter a ver com a ordenação de mulheres diáconos, cujo lugar na história da Igreja foi objectvo do trabalho de uma comissão de especialistas. Mas o Papa Francisco considerou que o relatório do grupo era inconclusivo.
Instrumento de Trabalho aponta muito mais, no âmbito da participação dos fiéis católicos em lugares de responsabilidade comunitária: a promoção de vocações “autóctones de homens e mulheres” cuja contribuição decisiva deve ser o “impulso para uma autêntica evangelização a partir da perspectiva indígena, segundo os seus usos e costumes”; os crentes devem ter “protagonismo” e “espaço para que sejam sujeitos da Igreja em saída”, também com a abertura de processos sinodais “com a participação de todos” os fiéis; e devem ser criados itinerários formativos à luz do pensamento social católicos, “com enfoque amazónico”, em especial nos âmbitos da cidadania e política”.

“Conversão eclesial” na Amazónia
O documento, que foi apresentado nesta segunda-feira em Roma, não deixa dúvidas sobre os objectivos, logo a partir do título: “Amazónia: Novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”. Divide-se em três partes e 21 capítulos, além da introdução e conclusão. “A voz da Amazónia” é a primeira e nela se fala da Amazónia como “fonte de vida” que, no entanto, se encontra ameaçada e cuja exploração é preciso “enfrentar”; fala-se também de um território onde tudo está ligado, do tempo de inculturação e de grandes desafios que se vive e dos caminhos de diálogo que são necessários.
A segunda parte aborda a “Ecologia integral: o clamor da terra e dos pobres”. Destruição extractivista, o isolamento voluntário dos povos indígenas, as ameaças que pesam sobre eles e as suas vulnerabilidades, as migrações das populações para os grandes centros, os desafios das culturas urbanas, a corrupção como “flagelo moral estrutural”, a saúde (incluindo a valorização das medicinas tradicionais) e a educação integral são os aspectos tratados.
Esta parte termina com um ponto dedicado à necessária “conversão eclesial” na Amazónia, apontando caminhos que a Igreja deve trilhar neste âmbito: desmascarar as novas formas de colonialismo; ser crítica das ideologias que fomentam o ecocídio amazónico; promover mercados eco-solidários e uma sobriedade que respeite a natureza e os direitos dos trabalhadores; e reconhecer formalmente um ministério especial na comunidade católica de promotor do cuidado da Casa Comum.
A terceira parte é dedicada especificamente à estrutura, organização e dinâmica eclesial: privilegiar uma Igreja com “rosto amazónico e missionário”, que esteja numa atitude de escuta e despojamento, através da inculturação (incluindo na liturgia), com atenção à evangelização nas cidades, ao diálogo ecuménico e inter-religioso e aos meios de comunicação.

“Indígenas que preguem a indígenas”
Crianças indígenas na região amazónica de Manaus: o documento sugere que deve ser apoiada a inserção dos religiosos junto dos mais pobres e excluídos, dando prioridade às necessidades dos povos locais. Foto © António Marujo

No que se refere à abertura do ministério presbiteral (de padre) a homens casados, o texto reafirma que “o celibato é um dom para a Igreja”, mas que a hipótese deve ser estudada para zonas mais remotas da região amazónica. Homens e mulheres com lugares de liderança nas comunidades devem ser “indígenas que preguem a indígenas a partir de um profundo conhecimento da sua cultura e da sua língua, capazes de comunicar a mensagem do evangelho com a força e eficácia de quem tem a sua bagagem cultural”. E acrescenta: “Há que partir de uma ‘Igreja que visita’ para uma ‘Igreja que permanece’, acompanha e está presente através de ministros que surgem dos seus próprios habitantes.”
Acerca do papel das mulheres, o texto destaca que nem sempre ele é valorizado nas comunidades católicas. “Elas pedem para recuperar o espaço dado por Jesus às mulheres” e devem ter “garantida a sua liderança”, assim como “espaços cada vez mais amplos e relevantes, na área formativa”. Deve ainda escutar-se a voz das mulheres e dar-lhes possibilidade de ser consultadas.
Sobre o papel dos religiosos e religiosas, o documento sugere ainda que deve ser apoiada a sua “inserção junto dos mais pobres e excluídos e a incidência política para transformar a realidade”. Ao mesmo tempo, as necessidades dos povos locais devem ser prioritárias para as congregações religiosas.
A assembleia especial amazónica do Sínodo dos Bispos – órgão consultivo do Papa, que reúne membros dos episcopados do mundo inteiro ou de determinada região do mundo, como neste caso – reunirá não só bispos do Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana Francesa, Guiana, Peru, Venezuela e Suriname, como também “homens e mulheres pertencentes aos povos amazónicos”, que possam “transmitir os seus desejos e anseios mais profundos”.
No final da assembleia sinodal, os participantes votarão um documento com propostas a entregar ao Papa que, por sua vez, redigirá a partir desse texto uma exortação apostólica, com indicações precisas sobre os caminhos a percorrer.

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