No passado dia 11 de Maio, o 7MARGENS publicou uma entrevista de António Marujo ao cardeal Gianfranco Ravasi. Nela se abordavam temas de interesse no âmbito da Igreja Católica, tais como o afastamento dos jovens, os conflitos internos na Igreja, o papel das mulheres, o estatuto dos refugiados, etc. A esta conversa foi dado o título “O problema não é saber se Deus existe: é saber qual Deus”. É um tema que vem de longe e que particularmente nos interpela, não tanto num contexto teológico/metafísico quanto no plano da própria acção humana. Para nos ajudar a responder a esta interpelação, recorremos a duas figuras que, no século passado, se debruçaram sobre a temática, na altura insólita, da fragilidade de Deus e das consequências da mesma: Etty Hillesum e Dietrich Bonhoeffer. Em contextos diferentes – Holanda e Alemanha – viveram os terríveis anos da II Guerra Mundial, sofrendo na pele a ameaça do nazismo, da qual foram vítimas.
Etty Hillesum foi uma judia holandesa que nas suas Cartas e Diários ( Lisboa, Assírio e Alvim, 2008 e 2009) relatou o sofrimento dos judeus sob a ocupação nazi. Pelo testemunho que nos legou, ficamos cientes do seu processo de auto-conhecimento, o qual culminou numa profunda espiritualidade. Etty assumiu-se como alguém que encontrou em Deus a força para ultrapassar as misérias do quotidiano. Recusando a ajuda de amigos que pretendiam escondê-la, colaborou com o Conselho Judaico no campo de Westerbork, onde ajudou uma população em trânsito para Auschwitz, um destino que também foi o seu.
Cuidar dos outros impediu-a de perder a esperança. Contra o inferno da lama e da doença, opôs a beleza da vida e enfatizou a capacidade regeneradora da mesma. Não tinha ilusões quanto ao futuro que a esperava mas apreciava os raros momentos de felicidade – a visão de uma flor ou de um pôr do sol. A sua presença luminosa no meio do sofrimento dos condenados a uma morte certa, levou a que os companheiros lhe chamassem “o coração pensante das barracas”. Etty tentou superar o sofrimento procurando dentro de si a presença de Deus. Um Deus frágil e silencioso, destituído de poder, carente de ajuda: “Há algo que cada vez é mais evidente para mim: que Tu não nos podes ajudar e que nós teremos que Te ajudar a ajudar-nos” (C W 2, p. 780). Ela entendeu a criação como algo inacabado. Deveríamos colaborar com Deus para a completar pois é nosso dever ajudar Deus na solução dos problemas do mundo.
Dietrich Bonhoeffer foi um teólogo alemão, fundador da Igreja Confessante (Bekennende Kirche), um desvio da Igreja Luterana a que pertencia. Acusado de ter participado numa conspiração contra Hitler, esteve dois anos preso e foi enforcado no fim da guerra. Bonhoeffer é uma personagem multifacetada, na qual se fundem de um modo coerente, o cidadão e o crente, o teólogo e o investigador, o pastor que fala em nome da fé e o rebelde que se indigna contra a passividade e colaboração da Igreja Luterana alemã perante a questão judaica.
A prisão deu-lhe oportunidade para rever a fé e reformular conceitos bíblicos (vd.Resistência e Submissão. Cartas e anotações escritas na prisão, S. Leopoldo, Sinodal/EST, 2003 e Ética, Lisboa, Assírio e Alvim, 2007). É em nome da fidelidade a Deus que Bonhoeffer se propõe reformar a Igreja, repensar a teologia e refundar a ética. Num mundo que, segundo ele, “atingiu a maioridade”, o seu intento foi descobrir uma linguagem divina inequivocamente colocada ao serviço dos homens. Para ele, ser cristão é ser homem, é viver num mundo emancipado de Deus, situação essa que acaba com uma ideia falsa de divindade e nos leva a uma procura total, empenhada no concreto e no quotidiano.
Criticando a concepção de um Deus ex machina,Bonhoeffer propôs-nos um Deus sofredor e impotente, um Deus que remete directamente para Cristo e para os homens. Os escritos que nos deixou visam tempos futuros, uma nova época sem Deus mas na qual a palavra de Deus comanda. No seu entender, não mais podemos ser religiosos no sentido tradicional do termo. Há que tomar parte activa no mundo, numa luta em prol da justiça e da paz. O cristianismo não é uma religião mítica dirigida para um além. Num mundo emancipado de Deus a nossa busca deverá voltar-se para a sociedade, para a vida de todos os dias. E encontramos Deus no mundo, no centro da vida, nas falhas humanas. A Igreja e os cristãos têm como missão manter-se vigilantes, denunciar e agir, ajudando Deus a realizar-se com os homens, no meio deles e com eles, na construção de uma nova época, num mundo sem Deus onde, no entanto, a palavra de Deus impere.
Alguns anos mais tarde, o filósofo judeu/alemão Hans Jonas interrogou-se sobre a incompatibilidade da existência de Deus e do Holocausto (O conceito de Deus após Auschwitz, São Paulo, Paulus, 2016). Um Deus que aceita o mal terá que ser enigmático, ininteligível, absconditus. Jonas pôs em causa o conceito de Deus como Senhor da História. Revisitando Job perguntou: como foi possível Auschwitz? que Deus é este que permitiu tais atrocidades? Para o filósofo, a existência do mal é incompatível com o poder absoluto de Deus. Por isso declarou a Sua impotência, da qual a Shoahseria a melhor demonstração. Depois de criar o mundo, Deus não tem mais nada a oferecer aos homens. São estes que deverão trabalhar o que lhes foi dado.
O conceito de Deus, presente nestes três pensadores, tem de comum a vulnerabilidade. Note-se que tanto Etty como Bonhoeffer não puseram em causa a confiança em Deus. Para eles, um Deus frágil não representa algo de negativo. Implica sim a dignificação do homem, que é interpelado a colaborar numa criação incompleta, carente da ajuda humana para atingir a plenitude. Trata-se de uma resposta possível à acusação de Jonas de um Deus impotente, entendendo a fragilidade divina não como carência ou defeito mas como apelo à humanidade, convidando-a a colaborar numa criação incompleta, perante a qual uma atitude contemplativa não basta.
Penso que estes dois testemunhos constituem achegas a considerar para uma possível resposta à pertinente questão levantada pelo cardeal Ravasi: “O problema não é saber se Deus existe: é saber qual Deus”. Pela mão de Etty e de Bonhoeffer somos confrontados com um Deus que nos considera parceiros activos da sua obra – um Deus que nos desafia.
Maria Luísa Ribeiro Ferreira é Professora Catedrática de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (http://luisarife.wix.com/site; luisarife@sapo.pt)
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