terça-feira, 6 de março de 2018
Capa da revista Donne Chiesa Mondo, de Novembro de 2016,
dedicada ao tema Mulheres esquecidas
(Este texto é dedicado às mulheres dos que fazemos este blogue: Cristina, Elsa, Isabel e em memória da Sílvia)
O debate sobre questões ligadas ao papel das mulheres no cristianismo está a crescer no interior das diferentes comunidades cristãs, incluindo a Igreja Católica. Ao aproximar-se o Dia Internacional da Mulher, que se assinala depois de amanhã, dia 8, a questão da “desvalorização da mulher pela Igreja” foi abordada pelo padre Fernando Calado Rodrigues nesta segunda-feira, no JN:
A Igreja é perita em humanidade. Tem ensinamentos preciosos sobre a promoção humana e uma extraordinária Doutrina Social, em linha com a mensagem do Evangelho. Esta, como se viu, contempla a defesa do papel da mulher na Igreja e no Mundo. O problema é que determinados setores da Igreja se esquecem, vezes de mais, de a pôr em prática. (texto para ler aqui na íntegra)
80 por cento do trabalho
Um percurso avulso e desordenado por alguns textos publicados na internet, nos últimos anos, permite perceber alguns dos muitos contornos do debate em curso. Fica, por isso, um contributo apenas com a ideia de levantar a ponta do véu acerca de um tema que, nas últimas décadas, ganhou contornos de um debate intenso e cada vez mais rico.
Desde logo, comece-se por assumir alguns dados de uma realidade em claro-escuro, como os que foram trazidos para a praça pública pela denúncia da reportagem da revista Donne Chiesa Mondo (Mulheres Igreja Mundo), sobre o trabalho não reconhecido, “gratuito ou mal pago”, feito por tantas religiosas em instituições católicas ou em casa de clérigos.
Para completar esta informação, podem acrescentar-se os dados que Carolyn Woo, presidente do Catholic Relief Services (a Cáritas dos Estados Unidos) referiu num simpósio organizado no Vaticano: as mulheres realizam 80% dos trabalhos não feitos pelo clero na Igreja; e os postos de liderança que muitas mulheres ocupam na Igreja Católica reflectem uma prática de mulheres comprometidas e de partilha de poder; e também ao longo dos séculos, foi em estruturas da Igreja que muitas mulheres secapacitaram e desenvolveram.
Além da realidade, há também um problema de percepção: muitas mulheres sentem-se tratadas de forma injusta pela estrutura eclesial, como analisava este estudo referente às décadas 1970-2010.
O Papa Francisco referiu-se já várias vezes à gravidade do problema da desigualdade entre homens e mulheres, que considera um escândalo. E amanhã mesmo, dia 7, um livro que será publicado em Espanha inclui um prefácio do Papa, no qual Francisco manifesta a sua preocupação com o facto de “na própria Igreja, o papel de serviço a que todo o cristão é chamado deslize, no caso da mulher, algumas vezes, parapapéis que são mais de servidão do que de verdadeiro serviço”.
Teologia e lugares de autoridade
Seis meses depois da sua eleição, o Papa deu uma entrevista à revista La Civiltà Cattolica, na qual se referia explicitamente ao papel das mulheres no interior da Igreja. Afirmava ele ser necessário “ampliar os espaços de uma presença feminina mais incisiva na Igreja” e de “trabalhar mais para fazer uma teologia profunda da mulher”, incluindo na reflexão sobre os lugares onde “se exerce a autoridade nos vários âmbitos da Igreja.”
Noutra declaração muito citada, o Papa disse que não quer as mulheres na Igreja apenas para fazerem de “cereja em cima do bolo”. Ao mesmo tempo, promoveu a nomeação de várias mulheres para lugares de responsabilidade em diferentes estruturas da Santa Sé.
Este é um tema em aberto, considerava a historiadora e ensaísta Lucetta Scaraffia, que dirige a Donne Chiesa Mondo. Já em 2014 Scaraffia considerava que a estratégia do Papa Francisco, começando o debate pelo âmbito teológico e não apenas por uma qualquer modernização, é a correcta: “Se a questão é teológica, isso significa que, no cerne do problema, não está a ‘modernização’, mas sim algo mais profundo e importante que toca a natureza espiritual da Igreja.”
Também o ex-jesuíta José Maria Castillo defendeu já que a estratégia do Papa Francisco é a mais acertada: “O Papa Francisco insiste na necessidade de que a Igreja retorne à vivência integral do Evangelho. Pois bem, se isto for realmente levado a sério, vamos ‘a sério’ pôr em prática o que disse o Papa. E, neste caso, o que encontramos no Evangelho é que Jesus não ordenou ninguém como sacerdote.”
Foi com a consciência de que, apesar do que já se fez, muito há ainda para debater e alterar que a Congregação para a Doutrina da Fé promoveu um debate sobre o lugar das mulheres na Igreja.
Também o Conselho Pontifício da Cultura criou, há um ano, um conselho consultivo exclusivamente composto por mulheres – são 37, neste momento, incluindo a teóloga muçulmana iraniana Shahrazad Houshmand e que, na expressão da sua coordenadora, pretende ser um “choque eléctrico” para o conjunto da Igreja.
Argumentos críticos
O que se tem feito é pouco ou muito? E é a estratégia correcta ou não? Estas são as questões centrais. Lucetta Scaraffia, já se disse, considera que o caminho que tem sido seguido pelo Papa é o acertado, mas num comentário assinado no La Croix International, Robert Mickens diz que a questão das mulheres é um dos problemas não resolvidos no actual pontificado (na minha perspectiva, o texto é pouco rigoroso, pois acentua um episódio de um encontro que se realiza quinta-feira e ignora os encontros já realizados e as nomeações feitas pelo Papa até agora).
A questão, porventura, é mais vasta do que dirimir o que (não) está a ser feito. A teóloga brasileira Ivone Gebara aponta em entrevista a importância de incorporar a reflexão sobre a opressão de que as mulheres têm sido vítimas também no interior da Igreja e acrescenta: “É claro que a tradição patriarcal onipresente e a máquina burocrática do Vaticano assim como das Igrejas locais não facilitam mudanças institucionais para as mulheres. Mas elas caminham apesar dos pesares, afirmando sua liberdade de existir e expressar suas necessidades e seus sonhos.”
Também a reflexão sobre a igualdade e a relação com as comunidades homossexuais e transgénero são ainda dificuldades grandes neste percurso.
Por onde começar?
Se a questão é desde logo teológica, aprofundemos, então, alguns contributos desse âmbito. Por exemplo, sobre o modo como Maria Madalena pode ou não ajudar ao debate acerca do papel da mulher no interior das comunidades cristãs – tendo em conta, nomeadamente, o facto de o Papa Francisco ter promovido à categoria de festa a celebração litúrgica dedicada a Maria Madalena, o que a colocou a par dos restantes apóstolos (homens).
Maria Madalena esteve com Jesus “ao pé da cruz, e é a primeira testemunha da Ressurreição”, recebendo “um dom especial que os apóstolos não receberam”, como dizia o jesuíta espanhol Pedro Miguel Lamet, autor de um livro que ficciona cartas que Maria Madalena teria escrito a Jesus, depois da morte deste.
A visão bíblica deve ajudar a iluminar qualquer debate sobre o tema, mesmo na reflexão sobre a questão da igualdade, por vezes tão mal colocada.
Na vida de Jesus, as mulheres ocuparam um lugar mais importante do que aquele que tem sido afirmado pela tradição e pelas leituras do texto bíblico ao longo dos séculos. Nas primeiras comunidades cristãs – desde logo, aquelas que foram fundadas por Paulo – as mulheres também ocuparam lugares de liderança e responsabilidade – ou seja, aqueles que hoje estão entregues ao clero e aos diáconos – pois estavam investidas da autoridade de falar em público, coordenar a vida comunitária e de ter um protagonismo que, entretanto, lhes viria a ser negado.
Ao longo da história do cristianismo, foram muitas as vozes de mulheres que também reivindicaram, de forma explícita ou implícita, um papel mais importante no interior da comunidade cristã. Muitas mulheres que foram proclamadas santas têm ainda muito a dizer sobre isto, e mulheres como Hildegarda de Bingen ou Teresa d’Ávila ajudaram a formar uma consciência sobre esse papel das mulheres que foi tantas vezes menosprezado.
Entre as muitas contemporâneas que têm defendido outro lugar e outra presença para as mulheres no interior do catolicismo, podem apontar-se os nomes de Maria Voce, actual coordenadora do Movimento dos Focolares (que Lucetta Scaraffia considera a mulher mais influente no catolicismo contemporâneo) ou de Dorothy Day, jornalista do The Catholic Worker, activista, sindicalista, anarquista, escritora e mística.
Em Portugal, poderiam citar-se nomes como os de Maria de Lourdes Pintasilgo, Ana Vicente ou Sophia de Mello Breyner (também evocada aqui) .
Caminhos de saída
É conhecido que o Papa instituiu uma comissão encarregue de estudar o diaconado feminino – ou seja, a possibilidade de ordenar mulheres para alguns serviços da comunidade (uma questão que, aliás, também é objecto de debate no interior da Igreja Ortodoxa).
Há quatro anos, Susan Olson, das Irmãs Escolares de Notre Dame de Namur, propunha também que a reflexão sobre a teologia dos sacramentos pode ser outro passo importante neste caminho: “Talvez a teologia dos sacramentos seja uma abordagem melhor do que os anos gastos desenvolvendo uma teologia das mulheres, as quais são, antes de tudo, humanos e parte do laicato. Uma teologia dos dons abriria portas à partilha da vida sacramental da Igreja com as mulheres. O laicato como um todo e, em particular, as mulheres têm dons que poderiam ser partilhados na administração dos sacramentos, e a teologia envolvendo os sacramentos apoia esta partilha. O diaconato abriu as portas e agora são somente as mulheres que estão excluídas.”
E como foi dito, estes textos são apenas uma curta viagem por alguns argumentos de um tema vastíssimo.
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