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domingo, 25 de março de 2018

Óscar Romero assassinado há 38 anos: não vergar perante leis imorais


sábado, 24 de março de 2018


Óscar Romero, em 1979, fotografado na igreja de San Antonio Los Ranchos, 
em Chalatenango, El Salvador (foto de fr. Octavio Duran/CNS, reproduzida daqui)

Foi um bispo em construção: a 24 de Março de 1980, faz hoje 38 anos, Óscar Romero, arcebispo de San Salvador (capital de El Salvador) foi assassinado quando celebrava a eucaristia. Mártir sem o querer ser, só o foi por assumir aquilo que pare ele era o essencial: anunciar o evangelho de Jesus, em quem acreditava. E, nesse evangelho, incluir a centralidade da justiça, da paz, dos direitos humanos, da dignidade da pessoa, da não-violência.  

Duas biografias publicadas em Portugal e um livro com uma selecção de textos do arcebispo podem ajudar a compor um retrato do arcebispo mártir, que deverá sercanonizado pelo Papa Francisco, ainda este ano.

E ajudam também a entender o itinerário pessoal de Romero e porque é que a sua canonização demorou 38 anos: o medo da mensagem de alguém que passou de “moderado” e “conservador” a um bispo metido no meio do seu povo e identificado na fase final da sua vida com a teologia da libertação, prevaleceu nas estruturas de decisão da Igreja Católica.

No livro Óscar Romero – O amor deve triunfar (ed. Paulinaso capítulo 7, “Amor, a vingança dos cristãos, pode ser lido aqui), Kevin Clark descreve bem os obstáculos que dominaram em diferentes estruturas da Igreja: vários bispos salvadorenhos criticavam o empenhamento do arcebispo junto dos mais pobres e desprotegidos, o núncio Emanuele Gerada (1920-2011) terá começado por apoiá-lo, confiando na sua “moderação” e vários cardeais no Vaticano [como Alfonso Lopez Trujillo (1935-2008) ou Darío Castrillón Hoyos (n. 1929)] usavam o seu poder para influenciar o Papa João Paulo II – que, no início, não entendeu o arcebispo e acabaria por ceder às acusações medíocres, retardando o seu processo de beatificação.

Romero nasceu no contexto de um continente e um país grandes contrastes, como muito bem descreve o livro de Clarke, que conhece bem o pensamento e acção do arcebispo: “Sessenta por cento da melhor terra de El Salvadorera controlada por menos de dois por cento da sua população”, exemplifica o autor. Rapidamente, os grandes produtores de café, principal fonte de riqueza do país, converteram o poder económico em poder político. De tal modo que, entre 1898 e 1931, a presidência do país esteve sempre nas mãos de produtores de café, recorda ainda Clarke.

Em Oscar Romero – A biografia (ed. AO), o autor, Roberto Morozzo della Rocca, escreve: “Para Romero, o drama de El Salvador tinha origem essencialmente na injustiça social e exprimia-se pela violência desumana e inaceitável.” E, como dizia o próprio bispo, citado no mesmo livro: “Se é verdade que não se pode perdoar o terrorismo nem a violência em nome do desacordo, também não se pode justificar a violência oficialmente instituída.”


Era um quadro de miséria institucionalizada e violência extrema: calcula-se que, só entre 1979 e 1981, tenham morrido mais de 30 mil pessoas e o próprio Romero dizia que a sua vocação parecia ser “andar por aí a recolher cadáveres”. E foi nessa realidade de condenação dos mais pobres a uma vida de sujeição a um regime de indigência e quase escravatura que Romero começou a tocar nas feridas da sociedade em que vivia, procurando as suas causa e a cura das mesmas: “As minhas pregações não são políticas. São pregações que, naturalmente, tocam a política, tocam a realidade do povo, mas para a iluminar e dizer-lhe o que é que Deus quer e o que não quer”, dizia o próprio arcebispo, citado no livro A Doce Violência do Amor (ed. Consolata Editora) que recolhe excertos de textos, homilias e discursos de Oscar Romero (uma apresentação do livro em Lisboa, em 2013, com o actual cardeal Gregório Rosa Chávez pode ser vista aqui)

Preocupado com esta realidade social, Romero situava-se inicialmente no campo das denúncias genéricas da mesma. Ele próprio criticava o empenhamento de padres, religiosos e outros cristãos nessa dinâmica de combate às injustiças gritantes que existiam no país e vitimavam muitos responsáveis e membros das comunidades cristãs. 


Óscar Romero com um grupo de mulheres e crianças, em El Salvador, 
numa foto não datada (CNS/Octavio Duran)

Kevin Clarke conta mesmo alguns episódios em que Romero retirou determinadas funções a alguns padres por causa de alegadas cumplicidades marxistas. Na excelente biografia que traça de Romero, o autor americano – editor-chefe da revista jesuítaAmerica – dá conta da evolução desse percurso, assinalando o assassinato do padre jesuíta Rutilio Grande, em 1977, como o ponto de viragem no discurso e prática de Romero. Mais cauteloso, Morozzo della Rocca fala de uma evolução e não de uma conversão e tenta distanciar Romero de Ignacio Ellacuría e seus companheiros, os jesuítas da UCA (Universidade Centro-Americana), que viriam a ser igualmente assassinados em Novembro de 1989 – facto verdadeiro numa primeira fase, mas errado quando Romero aprofunda a sua acção.

Lentamente, o arcebispo foi evoluindo para a denúncia das estruturas sociais injustas, passando a ser, ele próprio, um alvo dos comandos militares que espalhavam o terror no país. O que o levaria rapidamente ao martírio.

Se o seu processo foi uma evolução lenta ou uma conversão rápida, isso é o menos importante. No prefácio de A Doce Violência do Amor, Eugénio Fonseca escreve: “Houve, com efeito, um dinamismo de conversão do bispo Óscar Romero que passou de uma ideia e de uma prática de caridade assistencialista e ajuda paternalista para uma atitude caritativa diferente.”

Desse caminho, quer Kevin Clarke quer Morozzo della Rocca vão dando conta, em ambas as biografias (mais assertivo o primeiro, mais cauteloso, o segundo). Como também revelam um conjunto de pormenores em que vários membros da hierarquia católica se vão empenhando para contrariar a acção e o pensamento do bispo salvadorenho, como contava em Lisboa, em 2013, o seu mais próximo companheiro, hoje cardeal Gregório Rosa Chávez
Também o debate sobre o martírio e o arrastamento da decisão sobre o processo de beatificação são bastante esmiuçados em ambos os livros. E Kevin Clarke aprofunda ainda as razões da proximidade entre Romero e o Papa Francisco. 

Na véspera do seu assassinato, o arcebispo dirigia-se aos soldados dos esquadrões da morte que espalhavam o terror no país: “Irmãos, vós pertenceis ao vosso próprio povo. Vós matais os vossos próprios irmãos camponeses; e, frente a uma ordem para matar dada por um homem, a lei de Deus que diz ‘não mates’ deve prevalecer. Nenhum soldado é obrigado a obedecer a uma ordem contra a lei de Deus. Ninguém tem de se vergar frente a uma lei imoral.”

Foi por não se vergar a leis imorais que Romero foi morto, faz hoje há 38 anos.

(ao lado: capa de A Doce Violência do Amor. Sobre o arcebispo Óscar Romero, pode ler-se aqui uma outra evocação e algumas das suas propostashá duas semanas, Fernando Calado Rodrigues comentava a decisão da canonização, dizendo que “os que são lançados e abandonados nas valetas das ruas de Calcutá; os que são explorados e escravizados na América Latina; ou os pobres dos países subdesenvolvidos” sobem aos altares com esta e outras canonizaçõesaqui pode ler-se, em inglês, a evocação do frade franciscano Octavio Duran, que acabou por ser uma como que o fotógrafo oficioso de Óscar Romero.)




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