«Charlie é um jornal satírico, na tradição rabelaisiana e dos panfletários de 89 – do L' Ami du Peule, de Marat, e do Père Duchesne, de Jacques Hébert. A isto junta uma raiva iconoclasta, anarquizante, que o aproxima dos seus predecessores anticlericais dos princípios do século XX – Les Corbeause e L' Assiette au Beurre – e de contemporâneos, como Hara-Kiri. Em todas estas publicações há uma cultura de agressividade que, em tempos anteriores, produziu o panfletaríssimo anti-católico, anti-monárquico, anti-semita.
Charlie inscreve-se nesta tradição: contra a política e os políticos, mas também contra as religiões e contra os valores e os “pilares da sociedade”. Não há placa, na rua Nicolas Appert, que o identifique. Há quatro anos – no inverno de 2011 – a sede do jornal no Boulevard Davout foi escaqueirada e incendiada à bomba. Desde aí os editores seguem a mesma linha iconoclasta, mas tomaram precauções.
Nessa manhã de quarta-feira - dia 7 de Janeiro de 2015- havia reunião para avaliar a última edição e preparar a próxima. Sentaram-se à volta da mesa rectangular, que ocupava a divisão. Estavam lá quase todos, caricaturistas e jornalistas. Stéfane Charbonnier, “Charlie” era o director. Tinha 47 anos e um ar de adolescente determinado, tal como aparecia no retrato em que estava com as capas de Charlie atrás, levantando um punho cerrado, à comunista. Charlie era militante do PCF, autor dos desenhos satíricos mais obscenos e sacrílegos do Charlie e também o grande impulsionador da linha editorial, quase obsessiva, que fizera do catolicismo e do Islão os grandes inimigos. A vontade de sujar e conspurcar era muitas vezes mais forte do que a preocupação de ter graça. (…)
O papa Bento XVI era habitualmente retratado em cenas homossexuais, com um guarda suíço, ou de pedofilia com um menino de coro. A tradição vinha de longe: em 1976, um dos títulos de Charlie era: “Notre envoyé spécial à Rome câble: Dieu existe. J´ai enculé le Papa”. Edificante. Mas talvez porque a procurada irreverência não estivesse a produzir o efeito desejado e o insulto contra a igreja e os católicos fosse velho de séculos e cheirasse ao mofo de uma adolescência mal-resolvida, Charlie voltara as atenções para o Islão e para o profeta Maomé. Até por que no islão não era costume “dar a outra face”. (…)
As entidades associativas, representando os 5 milhões de muçulmanos franceses, tinham então tentado, através dos tribunais, proteger o Profeta da sua representação ridícula, que consideravam blasfema, e a comunidade muçulmana fizera várias manifestações ordeiras, silenciosas, de gente pacífica, incomodada com a ofensa. Sem grande resultado. Os tribunais, em depoimento de toda a liderança política, incluindo Sarkozy e Hollande, tinham absolvido Charlie em nome de um outro absoluto: o da liberdade de expressão.
Em Novembro de 2011, depois de muitas ameaças, a resposta chegara sob a forma de dois cocktails molotov. Mas Charb não se deixara intimidar. Era uma questão de honra. Passaria a ter dois polícias a protegê-lo permanentemente, mas não pararia com as caricaturas: “J ene peux pas juger la ménace réelle, tant que j ene suis pas mort!” Ou então: “Eu não tenho filhos, nem mulher: prefiro morrer de pé a viver de joelhos”. (…)
Naquele dia “Sentavam-se todos à mesa onde quase todos iam morrer. (…) A morte chegaria breve, entre cafés, graças e croissants…»*
Ali bem perto dois jovens, os irmãos Kouachi, órfãos de pais argelinos emigrantes, cresceram num turbilhão de assistências e condenações por pequenos delitos. Na prisão conheceram outro argelino, Dijamel Beghal, com ligações ao terrorismo internacional, que os iniciou no jihadismo. Naquele dia, acompanhados com as suas kalash em tiro automático, os dois manos varreram a mesa e a sala, fuzilando os presentes na dita reunião. Entre os disparos terão gritado: “Alá é grande! Vingámos o Profeta Maomé e matámos o Charlie Hebdo”. Não tinham medo, estavam treinados para aquelas coisas, para matar e para morrer, nem mais nem menos. Foram mortos dois dias depois, na sequência de forte perseguição policial.
A AQAP (Al-Qaeda in Arab Penissula) anunciou expressamente que tinha assumido a missão de “punir os crimes dos países ocidentais”, sobretudo da América, da Grã-Bretanha e da França.
«Em resposta às notícias deste ataque as autoridades da Liga Árabe, da Arábia Saudita, da Universidade al-Azhar do Cairo, do Irão, da Jordânia, do Bahrein, de Marrocos, da Argélia e do Qatar, bem como a esmagadora maioria das associações de muçulmanos de França, condenaram-no, insistindo na natureza “não muçulmana” deste tipo de violência».*
É uma realidade demasiado forte para ser comentada de forma ligeira, só pretendo recordar aquelo velho ditado de que é muito perigoso brincar com o fogo, pois todas as acções poderão ter um efeito contrário.
Esquecer este tema e problema é impensável, pois de vez em quando, voltamos a ser confrontados com semelhantes respostas de morte em atentados que não cessam de acontecer aqui e ali.
*In – O ISLÃO E O OCIDENTE – A GRANDE DISCÓRDIA – de Jaime Nogueira Pinto, Edições D. Quixote
José M. Esteves
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