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quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

O grande adeus

Ele e ela andam sempre juntos. Nem sempre estão de acordo: ele, mais materialista, gosta de dormir, comer, brincar, namorar, assistir a espetáculos; ela, mais ponderada e curiosa, aprecia os desafios do espírito, gosta de ler, aprecia tertúlias na companhia de pessoas que lhe possam ensinar algo, conversa com familiares idosos que lhe narram episódios do passado e descobrem segredos de parentes e costumes de outras épocas. Habitualmente, ela consegue convencê-lo; atrevo-me até a afirmar que ela manda nele. Mas nem sempre consegue, deixando-se arrastar, por cansaço, doença ou, por necessidade de distração, para ocupações menos exigentes ou lúdicas.

Ao longo da vida, já disseram várias vezes adeus, mas nunca um ao outro. No adeus aos pais, ele estava exausto e ela desolada e abatida. No adeus aos filhos que se emancipavam, ele doía-se de saudades e ela animava-o com um carinho exigente e lúcido: que eram crescidos e tinham de se responsabilizar como adultos que eram. Viveram pequenos “adeuses” e outros maiores, mas todos eles temporários. Agora sim, ela percebe que o grande adeus estará próximo. Ele está a perder a capacidade de acompanhar os seus desejos e ela sente a urgência de ter de se conformar e adaptar às fraquezas dele. O grande adeus estará próximo. Ela sabe que terão de se separar para sempre: ele, o corpo, e ela, a Alma.

Ela quer ler e ele recusa-se a ver. Ela quer visitar a família e ele trava-lhe o andar. Ela quer pensar e ele cabeceia. Ela quer ouvir música e ele faz ouvidos moucos... 

Curiosa a sensação dela face a esta realidade. Quanto mais o corpo a contraria, mais a alma aprecia os inestimáveis serviços que ele lhe prestou. Saciou-lhe a curiosidade de conhecer mundo através dos sentidos. Ela, graças à sua memória, inteligência e vontade, usufruía dos seus serviços, continuando a estudar, conviver, viajar... Quando os olhos dele se encantaram por certa rapariga, ela fê-lo observar o seu comportamento e convenceu-o a olhar para outro lado. Tinha razão e ambos, Corpo e Alma, ainda estão felizes com o olhar que os levou ao altar. Também ambos lhe disseram adeus; talvez o mais doloroso e doce de todos: o imposto pela viuvez. Quantas pessoas saberão ainda o que isto é? Amar e ser amado durante muitos anos, aventurar-se a correr riscos: responsabilizar-se por gerar e formar filhos dia a dia, minuto a minuto e deixar-se deslumbrar pela obra daí resultante que, há que reconhecê-lo, é sobre humana, é divina.

Está a chegar a hora. É o grande adeus. Ele irá para a terra e será pó. Ela espera ir para o Céu, porque conseguiu que o seu corpo colaborasse com o seu Amor, aquele que sempre estivera presente ao longo da vida. Agora percebe que não será o grande adeus, mas o Grande Encontro com o Amado. E, quando o Corpo, o companheiro da alma, se lhe vier unir, o Grande Encontro será em plenitude, de felicidade total.

Isabel Vasco Costa



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