Cada exercício espiritual dura uma hora e são cinco por dia. Durante oito dias. Esta é a matéria dos retiros de preparação, neste caso para a ordenação presbiteral. A experiência proposta por Santo Inácio de Loyola, para facilitar o encontro com Deus, pode passar pela leitura de textos bíblicos para a reflexão de um tema, ou para a contemplação de uma passagem da vida de Jesus. “O importante é encontrarmo-nos com o Senhor e não há uma forma de o fazer. Cada um, de acordo com a sua própria personalidade, cultura e maneira de estar no mundo é que vai percebendo o que o ajuda mais nesse percurso”, observa o diácono Francisco Molho, que acaba de regressar dos seus sextos exercícios espirituais.
Os primeiros aconteceram no terceiro ano de seminário, no final dos seis anos de curso somava quatro. Antes deste último, fez o de preparação para a ordenação diaconal. O jovem de 25 anos, que será ordenado padre no próximo domingo, dia 28 de junho, na Sé de Beja, diz que estes períodos de isolamento temporário para efeitos de oração e reflexão “são especiais e singulares”.
Este último veio chamar-lhe “mais a atenção para a necessidade de encontrar Deus no presente, na simplicidade da vida, despertando a capacidade para o reconhecer nas coisas simples do dia a dia, na minha vida, na vida dos outros, e nas situações que vivemos”. Na prática, entre outras coisas, pode trata-se de dar sentidos às palavras: “Tentar entender se o que uma pessoa me está a dizer pode ser aquilo que Deus me quer transmitir naquele momento, e o faz através dela. Ou perceber que uma pessoa precisa de uma palavra de ânimo, porque está numa situação difícil, e, então, eu possa ser a voz de Deus para ela”.
A duas semanas de ser ordenado padre, quando este trabalho para o “Diário do Alentejo” começa a ser preparado, garante que não está nervoso nem tem dúvidas de que esse é o seu caminho. Está confiante. “Sinto que fui escolhido mas, claro, depois também há uma decisão livre da minha parte que decidiu responder. O Senhor escolhe-nos mas não nos impõe”.
Explica que a vocação pela vida eclesiástica, no fundo, “foi um desejo que foi crescendo e amadurecendo” dentro dele. Depois, há um dia em que se exterioriza. No caso foi ao comunicar a decisão de entrar no Seminário, ao terminar o 12º ano do ensino secundário. Tinha 18 anos. “A vocação já vinha de trás, e cada vez fazia mais sentido a ideia de poder entregar a minha vida a Deus, e ao serviço da Igreja.”
A DESCOBERTA DA VOCAÇÃO A primeira vez que entrou numa igreja Francisco Molho nasceu em Moura, onde cresceu. Em criança não jogava à bola, gostava de andar de bicicleta, e de brincar na rua com os amigos, entre outras coisas, aos polícias e ladrões – foi umas vezes uma coisa, outras vezes outra.
Até aos sete anos, sensivelmente, não teve contacto com a Igreja, nunca tinha assistido ou sequer visto uma missa, pois nascera no seio de uma família não praticante. É por esta altura que entra na Associação de Escoteiros de Portugal (AEP) e tudo muda. Conta que nas reuniões de sábados à tarde havia uma rapariga das mais velhas que saía sempre mais cedo do que ele, e um dia, por curiosidade, decidiu segui-la, descobrindo que ia para a missa. “A primeira imagem forte que tenho é de ir atrás dela e ela entrar na igreja, que estava cheia de gente jovem, ainda por cima era a missa das crianças da catequese. Não sei explicar muito bem, sei que fiquei fascinado”.
Passou a ir à eucaristia todos os sábados e domingos, mais tarde todos os dias. A comunidade acolheu-o muito bem, integraram-no e, aos poucos, começou a fazer parte do grupo de acólitos, a cantar os salmos. Mais tarde entrou para o grupo de
jovens que, entre outras coisas, animava a celebração da missa com a música.
Francisco Molho não tinha ido para o primeiro ano da catequese porque a mãe tinha considerado mais prudente não o inscrever. O irmão, que é mais velho (atualmente é casado e pai de filhos) tinha frequentado a catequese e depois desistido, e a mãe, que achava que se os filhos se metiam nas coisas era para as levar até ao fim, “não quis correr riscos também com o mais novo”.
No dia que comunicou à família que queria seguir a vida eclesiástica, provavelmente não surpreendeu os pais e o irmão “Eles viam que eu estava bastante ligado à Igreja e, portanto, que isso podia vir a ser uma possibilidade”. Mas, naturalmente, a notícia provocou um certo impacto. “Os meus pais aceitaram, embora não compreendendo totalmente tudo o que estava por trás da minha decisão. Sempre me disseram que aquilo que me fizesse feliz era o que os faria felizes a eles”, comenta, acrescentando que o apoiaram sempre, foram levá-lo ao seminário, e nunca tentaram dissuadi-lo.
A escolha de Francisco também não surpreendeu os amigos, grande parte também ligada à Igreja. Todos ficaram contentes por ele, o que não evitou que alguns, por brincadeira, dissessem que não acreditavam que ele chegasse a ser padre. Está quase lá!
FAZER A DIFERENÇA A formação no seminário, que dura seis anos, é exigente e completa. A nível académico é muito vasta, com disciplinas como filosofia, teologia, sociologia e psicologia. “Depois, o facto de vivermos ali 24 sobre 24 horas, a rezar, a comer e a ir à escola com as mesmas pessoas, dá-nos uma grande estrutura humana. Pois somos todos diferentes, cada um com o seu feitio, e, portanto, para vivermos em comunidade, é preciso ir aprendendo a tolerar muita coisa, a aceitar que as pessoas são diferentes de nós e a gostar delas por o que são”, observa.
A partir do quinto ano de formação no seminário de Évora, Francisco passa a vir aos fins de semana para a sua diocese, a de Beja, e colabora nas paróquias da cidade. Agora está na paróquia de Grândola, de Melides e do Carvalhal. É ainda assistente espiritual no Estabelecimento Prisional de Pinheiro da Cruz e responsável do Departamento Diocesano Pastoral Juvenil de Beja. Depois da ordenação presbiteral no final deste mês, à partida vai manter estas mesmas funções, nas mesmas comunidades, pelo menos até setembro. Por estes dias, irá também apresentar a sua tese de mestrado na Universidade Católica, em Lisboa.
À pergunta se durante os anos de formação nunca vacilou ou quis desistir dos planos de seguir a vida eclesiástica, a resposta surge direta, entre sorrisos: “Nunca fiz as malas para vir embora, mas a dada altura questionamo-nos se esse é mesmo o caminho que queremos percorrer. Acho que isso é perfeitamente normal, e até seria mau se não acontecesse.” Reafirma que foi conseguindo responder a todas as perguntas e integrá-las na sua vida. O que fará de diferente
quando for padre, ainda não sabe. “Depende das paróquias e dos serviços que me forem confiados, e o que for possível fazer em cada sítio. Muitas vezes não basta querer, é preciso que haja condições para fazer”.
Gostaria de marcar a diferença não para “sobressair ou exaltar-se”, como diz, mas para deixar marcas positivas na vida das pessoas e no mundo. “Todo o ser humano tem sonhos nesse sentido e, aí, eu não serei diferente certamente. Agora em que é que isso se concretiza, ainda não sei”.
OPÇÃO PELO CELIBATO Antes de ser ordenado diácono, Francisco Molho assinou a declaração em que diz que é de sua livre vontade que vai ser celibatário. O preceito da igreja católica, que de vez em quando está na ordem do dia e acende discussões na sociedade civil entre os que estão a favor e contra, é explicado de forma simples, depois de esclarecer que há padres católicos casados. “A igreja católica é composta por 24 ritos. O latino, que é o nosso e o mais numeroso, é dos que inclui esta obrigação”.
“O que nós entendemos pelo celibato é não casar, resumidamente. Ora a privação, pela privação em si, não tem sentido nenhum, não significa nada. Aqui o que faz sentido é a finalidade pela qual nos privamos. Nós usamos muitas vezes a expressão teológica do celibato por amor do ‘reino dos Céus’, mas a ideia no fundo é esta: é pelo amor que temos a Deus e às pessoas, que não nos casamos”
E quando morrermos, vamos todos para o céu? “Isso não sei responder, só Deus saberá. Nós acreditamos que Ele, com a sua infinita misericórdia quer, de certeza absoluta, levar-nos para o céu, quer salvar-nos, mas também respeita a nossa liberdade. Nem seria de esperar outra coisa! Que Deus seria esse se, contra a vontade das pessoas, as obrigasse a viver a eternidade junto dele?”, interroga.
Mas há outras questões associadas ao celibato. Explica que uma delas “é a configuração com Cristo, que também não casou” e, portanto, “tornamo-nos mais semelhante a ele em muitas coisas e também nesta”. A outra diz respeito à “disponibilidade não só de tempo, mas sobretudo afetiva e psicológica”, que permite. Especifica: “Quando amamos alguém de forma especial, todas as outras, necessariamente, passam para segundo e terceiro planos, para darmos prioridade aquela que, digamos assim, nos enche o coração. O facto de abdicarmos desse amor permite-nos estar mais disponíveis para amar a todos por igual, para que toda a gente tenha a mesma preferência no nosso coração”.
“O facto de vivermos ali 24 sobre 24 horas, a rezar, a comer e a ir à escola com as mesmas pessoas, dá-nos uma grande estrutura humana. Pois somos todos diferentes, cada um com o seu feitio, e, portanto, para vivermos em comunidade, é preciso ir aprendendo a tolerar muita coisa, a aceitar que as pessoas são diferentes de nós e a gostar delas por o que são”.
20 ORDENAÇÕES NOS ÚLTIMOS ANOS
Segundo dados cedidos pela Diocese de Beja, entre 2000 e 2015, foram ordenados 20 padres nesta diocese, sendo que o maior número aconteceu em 2015, com seis ordenações presbiterais. Dos 20, nove são do Alentejo: três de Moura; dois de Alvalade-Sado; um de Safara; um de Sines; um de Cuba e um de Grândola. De acordo com a mesma fonte, nos últimos dezanove anos, foram ordenados dez diáconos permanentes que, como o próprio nome indica, vão sê-lo pela vida fora. Ou seja, não seguem para o sacerdócio. Uma vez que isto acontece, podem contrair matrimónio se, à data da ordenação, já for este o seu estado civil. Neste caso, a mulher tem que concordar – sem este consentimento, não há ordenação. Mas, se enviuvarem, já não poderão voltar a casar.
O SACERDÓCIO É UMA VOCAÇÃO
Francisco Molho diz que “o sacerdócio é uma vocação, algo que estrutura a vida”. Não tem dias nem horas para expressar-se, não funciona com base num horário ou contratos. “Neste momento sou diácono desde que me deito até que me levanto, e inclusive enquanto estou a dormir”. Diz que isso implica um estilo de vida. “Não se trata de fazer coisas, mas de ser, essencialmente em ser. É claro que também fazemos coisas, trabalhamos [enquanto homens da Igreja], e alguns têm também outras profissões”. Há padres médicos, outros são professores. Francisco Molho é também professor de religião e moral numa escola, lecionando uma hora semanal.