Quase todos nós possuímos um carisma, uma apetência para desenvolvermos melhor uma atividade com os nossos talentos. Torna-se necessário pô-los a render em prol do bem-estar dos outros. Passo a esclarecer a minha motivação para escrever este artigo. Há alguns dias vi na televisão um motim numa prisão no Brasil em que morreram vários reclusos. Na altura veio-me ao pensamento uma situação vivenciada há alguns anos atrás, mais precisamente durante uma visita a um curso de formação profissional e educacional destinado a população desfavorecida. Neste caso eram jovens com mais de dezoito anos, com baixa escolaridade, sem competências profissionais. Durante uma visita de acompanhamento, enquanto falava com um destes jovens, na realidade, com um comportamento menos afável, como se quisesse projetar a sua revolta através da verbalização de palavras pouco amáveis. Tentei de alguma forma captar a sua atenção. Virou-me as costas e pôs os auscultadores, começando a ouvir música. Sentia que não podia dar parte de fraca, que tinha que controlar a situação, ainda que por dentro chorasse amargamente perante esta falta de respeito. Pensei um pouco. Agarrei o crucifixo e pedi a Deus que me ajudasse a ultrapassar a difícil situação em que me encontrava. Qual teria sido a vida deste jovem para ter gestos anti-sociais numa visita que se queria de cortesia, afetiva, de Natal, num contexto nada fácil. Pensei interiormente que a festa era deles, eu era uma mera intrusa, que vinha perturbar, ainda que unicamente quisesse o seu bem. Eu representava para eles uma sociedade, talvez pouco justa, com pouca solidariedade; e ao jovem talvez lhe faltasse quase tudo, em particular o afeto familiar, a alimentação, a educação, a habitação. O resultado estava à vista.
Aproximei-me do jovem. Perguntei-lhe amistosamente o que estava a ouvir que não conhecia. O jovem admirou-se com a minha atitude. Explicou-me quem era o cantor. Depois, tratando-me por “dona”, referiu que escrevia poesia. Perguntei se era possível mostrar-me alguns dos seus versos. Na impossibilidade, o jovem declamou um verso. Tive algum grau de dificuldade em o entender, bem como a música que ouvia. Perante este choque cultural e geracional, achei que o melhor era procurar o que nos unia, neste caso, a formação. De qualquer modo, animei-o a que, se sentia essa veia artística, devia continuar a explorá-la. Aos poucos, consegui ir dialogando com os jovens, partilhar o bolo-rei, os doces, os salgados. Também recordei que festejávamos principalmente o nascimento de Jesus. Tinha levado um pequeno presépio. Olhavam com alguma admiração. Afinal, a “dona” não se perturba com o nosso comportamento. E o diálogo ocorreu… A certa altura, um dos jovens transmitiu com palavras que vinham do fundo do coração: “Não nos ensinaram outras coisas”. Que enorme responsabilidade senti nesse momento, que tristeza em simultâneo. Esta é a verdade nua e crua. As nossas vivências, a nossa educação, repercute-se pela vida fora. Violência gera violência. Em que ambiente aqueles jovens teriam crescido? Que condições de vida a sociedade lhes proporcionou? Pelo que soube, um destes jovens vivia só, isolado numa tenda. Mais não vou dizer, unicamente perguntar: “quem quer atirar a primeira pedra e julgar?”
Bem sei que tudo é questionável. Que há excelentes pessoas que ultrapassaram todas estas situações e hoje são pessoas perfeitamente estáveis e integradas. Mas e a doença? Nem todos possuímos a mesma força interior. A fragilidade existe, e também os comportamentos desviantes, que às vezes estão latentes e por qualquer circunstância vêm ao de cima. Culpar quem? Tantas vezes pensei no assunto sem encontrar respostas. Cada caso é um caso! Não devemos de todo julgar. Mas se todos ajudarmos um pouco, dentro das nossas possibilidades, conhecimentos e carismas, podemos certamente prevenir muitas destas situações. Será que nos encontramos suficientemente despertos e atentos, que não sentimos uma inquietação interior? Fazer o bem resulta sempre, ainda que às vezes pareça que não vejamos os resultados de imediato. Mudar comportamentos não constitui tarefa fácil, principalmente quando surge associada a alguma patologia.
Há pouco teve início o ano 2018. Foi igualmente o Dia Mundial da Paz e da Solenidade de Maria Santíssima Mãe de Deus. O Papa Francisco na sua Homília referiu:” Maria guardava todas estas coisas, meditando-as. Quais eram estas coisas? Eram alegrias e aflições: por um lado, o nascimento de Jesus, o amor de José, a visita dos pastores, aquela noite de luz; mas, por outro, um futuro incerto, a falta de uma casa, ‘porque não havia lugar para eles na hospedaria’, o desconsolo de ver fechar-lhes a porta; a desilusão por Jesus nascer num curral. Esperanças e angústias, luz e trevas”…
Concluo, na esperança de que neste ano não se fechem as portas a quem mais precisa. Que cada vez mais não ouçamos a exclamação: “Não nos ensinaram outras coisas!” Temos diante de nós o ponto de partida: A Mãe de Deus…, Mãe terna, humilde, pobre de coisas e rica de amor... Olhando para a Mãe, somos encorajados a deixar tantas bagatelas inúteis e reencontrar aquilo que conta… e a saber guardar, fazer a ligação no coração, vivificar… A Mãe, guarde este Ano e leve a paz do seu Filho aos corações, aos nossos corações e ao mundo inteiro. E como filhos d´Ela, saudemo-La dizendo: “Santa Mãe de Deus, rogai por nós!”
Maria Helena Paes |
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