Na Colômbia, o acordo de paz entre o governo e uma parte da guerrilha, que motivou a atribuição do prémio Nobel da Paz ao presidente Juan Manuel dos Santos, foi inicialmente rejeitado quando submetido a referendo. Foi depois remodelado e aprovado no Parlamento, já não sem sujeição a voto popular. Recordo bem a profunda divergência entre duas pessoas colombianas que conheci, ambas de fortes convicções cristãs, a respeito desse acordo. A que a ele se opunha não o fazia por rejeição da causa da paz, mas por não aceitar que desse acordo pudesse resultar a impunidade de crimes graves, como homicídios ou o tráfico de droga. Questões semelhantes já se têm colocado noutros contextos de transição política em que se busca a reconciliação nacional depois da queda de regimes violadores dos direitos humanos (na Argentina, ou na África do Sul, por exemplo).
A propósito desta e de outras questões mais gerais relativas às finalidades do sistema penal, não me canso de citar as luminosas palavras de São João Paulo II na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2002 Não há paz sem justiça, não há justiça sem perdão:
«Muitas vezes me detive a refletir nesta questão: qual é o caminho que leva ao pleno restabelecimento da ordem moral e social tão barbaramente violada? A convicção a que cheguei, raciocinando e confrontando com a Revelação bíblica, é que não se restabelece cabalmente a ordem violada, senão conjugando mutuamente justiça e perdão. (...)
«o perdão opõe-se ao rancor e à vingança, não à justiça. Na realidade, a verdadeira paz é “obra da justiça” (...)
«Mas, como a justiça humana é sempre frágil e imperfeita, porque exposta como tal às limitações e aos egoísmos pessoais e de grupo, ela deve ser exercida e de certa maneira completada com o perdão que cura as feridas e restabelece em profundidade as relações humanas transtornadas. Isto vale tanto para as tensões entre os indivíduos, como para as que se verificam em âmbito mais alargado e mesmo as internacionais. O perdão não se opõe de modo algum à justiça, porque não consiste em diferir as legítimas exigências de reparação da ordem violada; mas visa sobretudo aquela plenitude de justiça que gera a tranquilidade da ordem, a qual é bem mais do que uma frágil e provisória cessação das hostilidades, porque consiste na cura em profundidade das feridas que sangram nos corações. Para tal cura, ambas, justiça e perdão, são essenciais.»
Nem sempre é fácil articular, concretamente, a justiça e o perdão. Por isso, divergiam os meus amigos colombianos a respeito dos termos do acordo alcançado pelo presidente Juan Manuel dos Santos.
A recente visita do Papa Francisco à Colômbia não se destinava a aprovar alguma opção concreta quanto aos termos desse acordo de paz. A intenção do Papa era a de preparar as mentes e os corações de todos para uma autêntica reconciliação, baseada no perdão, a única que permite sarar «em profundidade as feridas que sangram nos corações». Tal não se obtém ignorando ou desvalorizando os sofrimentos das vítimas, correndo o risco de que os crimes se venham a repetir no futuro. A popularidade e a autenticidade do testemunho do Papa Francisco contribuíram fortemente para preparar essa reconciliação. O chefe do principal grupo de guerrilha (as FARC) pediu perdão pelos crimes cometidos por essa organização, aludindo, precisamente, a esse testemunho.
Mas a acompanhar a mensagem do Papa foram de grande eloquência os testemunhos de pessoas capazes de perdoar nas situações mais dramáticas. Impressionante foi o testemunho de Pastora Mira, uma mulher a quem mataram o marido, um filho e uma filha e veio a acolher um jovem que mais tarde soube ter colaborado num desses crimes. Simbolicamente, depôs uma camisa oferecida por essa filha a esse filho aos pés de uma imagem de Jesus Crucificado, para unir o seu sofrimento ao d`Ele e assim o transformar em bênção e capacidade de perdão que rompa o ciclo de violência e ódio.
A partir deste e de outros testemunhos, Francisco lançou este vibrante apelo:
«Colômbia, abre o teu coração de povo de Deus e deixa-te reconciliar. Não tenhas medo da verdade nem da justiça. Queridos colombianos, não tenhais medo de pedir e oferecer o perdão. Não oponhais resistência à reconciliação que vos faz aproximar uns dos outros, reencontrar-vos como irmãos e superar as inimizades. É hora de sanar feridas, lançar pontes, limar diferenças. É hora de apagar os ódios, renunciar às vinganças e abrir-se à convivência baseada na justiça, na verdade e na criação duma autêntica cultura do encontro fraterno».
Pedro Vaz Patto
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