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terça-feira, 28 de setembro de 2021

Da solidão e da descomunhão ao amor

1 - Uma realidade que fragiliza e destrói hoje muitas famílias é a incapacidade de os esposos viverem a fidelidade matrimonial, e a consequente separação do marido e da esposa. Assim a vida humana, que deveria ser estável e harmoniosa, fica tantas vezes reduzida a uma coleção de experiências falhadas de matrimónio. Além do sofrimento que essa instabilidade causa àqueles que passam por essas situações, muito sofrem e aguentam os filhos que ficam integrados em famílias monoparentais, incapazes de lhes oferecerem uma experiência mais completa do que é uma verdadeira família.

O que levará duas pessoas, que se amaram e quiseram juntar as suas vidas, a perderem o interesse e o respeito de uma pela outra, a não se suportarem, a agredirem-se, a odiarem-se? Há certamente vários factores a ter em conta. Mas salta à vista que o desaparecimento de Deus do viver dessas pessoas tem uma importância primordial. Alguém pode imaginar que não se vão ferir duas pedras colocadas juntas sobre um carro que percorre uma estrada cheia de buracos? Tal só não acontecerá se estiverem bem unidas e ligadas por um cimento forte. A verdadeira felicidade, aquilo que dá gozo, alegria e paz aos homens e mulheres e os torna fecundos, vem da sabedoria de se relacionarem bem e de se amarem, não como se imaginam, mas como são realmente.

Lembro-me do claustro do mosteiro de Moissac no sul da França, que, há anos, visitei. A posição das colunas que sustentam os arcos vai-se alternando: a uma coluna seguem-se duas e a essas duas segue-se uma, e isto ao longo de todo o retângulo do claustro. A sabedoria cristã ensina-nos que pode relacionar-se bem com os outros quem sabe viver dignamente consigo mesmo, quem vive como se fosse único no mundo. E essa sabedoria recebe-se e cultiva-se, antes de mais, no relacionamento com Deus que, sendo único, é comunhão viva de Três Pessoas distintas, Pai, Filho, e Espírito Santo. Não vive cada uma para si mesma, amam-Se e dão-Se e acolhem-Se mutuamente. Criados à imagem e semelhança de Deus, os homens e as mulheres apenas encontrarão a sua plena felicidade vivendo, imitando e reproduzindo no mundo a Vida da Santíssima Trindade. O Pai não é o Filho nem o Espírito Santo. O Filho não foi, não é nem será o Pai. Basta-lhe ser Filho. Veio ao mundo como Filho, viveu e anunciou ao mundo a Sua Vida de Filho, e foi como Filho que morreu e ressuscitou e subiu glorioso à direita do Pai de onde nos enviou o Espírito Santo e onde continua intercedendo por nós.

2 – Na primeira leitura do próximo domingo tirada do livro do Génesis, ouviremos Deus a afirmar: não é bom que o homem esteja só. E, cheio de solicitude pelo homem criado à Sua imagem, o Senhor Deus cria Eva para seu auxílio. Esta palavra auxílio, muitas vezes repetida na Bíblia, é quase sempre referida pelo homem a Deus. Deus é o verdadeiro auxílio do homem, e a mulher também é auxílio para o marido e o marido auxílio para a esposa, e um ser humano pode e deve ser auxílio para qualquer outro ser humano.

As primeiras palavras do homem registadas na Bíblia são a exclamação agradecida de Adão que recebe Eva como auxílio: esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, porque foi tirada do homem. E o texto conclui: por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa, e serão os dois uma só carne. Uma só carne. Não duas, lutando cada qual por dominar e manipular a outra.

Quando, pelo pecado, cada um volta costas ao outro, com quem se podem relacionar? Com Deus, com quem se relacionava Adão, antes da criação de Eva. A solidão primordial de Adão sempre nos acompanha como eventual perigo, mas também e sobretudo, como possibilidade de recomeço.

3 – Não é bom que o homem esteja só!

É verdade que a separação provisória do marido e da esposa para lhes dar espaço de reflexão tem sido, por vezes, muito útil, e tem salvado casamentos. Mas o ser humano não foi criado para a solidão, mas para o amor, para a comunhão. O problema está em que amar é morrer para si mesmo, para que o outro viva. E não pode amar assim, não pode dar a sua vida pelo outro quem tem medo de morrer, quem não reconhece o lado glorioso da Cruz e foge dela, quem não experimentou ainda a vitória de Cristo sobre a morte. Mas, certamente, ama assim quem tem o Espírito Santo que Jesus dá aos que n’Ele creem, quem se vê ligado e unido por Deus a outra pessoa e se torna uma só carne com ela.

Não separe o homem o que Deus uniu! Mas se a Deus não se deu lugar e responsabilidade na união tem lógica que também se não Lhe peça quando acontece uma separação. O ser humano precisa da dimensão transcendental, precisa de Deus, para poder sobreviver aos problemas do seu dia-a-dia.

4 – A leitura da Carta aos Hebreus convida-nos a contemplar Cristo coroado de honra e de glória por causa da morte que sofreu em proveito de todos. Esta contemplação, que nos une a Ele como filhos adotivos e uns aos outros como irmãos, dá-nos o Espírito Santo que nos concede podermos amar-nos uns aos outros, também quando somos inimigos, com o mesmo amor e com os mesmos sentimentos de Jesus.

Para lá chegarmos, precisamos de ser Seus discípulos ou seja, precisamos de nos negar a nós mesmos, de tomar em cada dia a nossa cruz e de O seguir. Precisamos de ser Igreja. A Igreja é, no mundo, o povo escolhido pelo Senhor, o espaço onde a palavra é acolhida e guardada, onde desabrocha e cresce, onde floresce e frutifica.

+ J. Marcos


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