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sábado, 4 de novembro de 2017

A Cinza do Purgatório

Repositórios do que as plantas têm de melhor, as sementes guardam poderosa energia vital. Alimentar-se com elas pode trazer grandes benefícios e já não poucas as pessoas que as ingerem preocupadas com a saúde. Sementes de linhaça, abóbora, girassol e chia são bons exemplos. Cá no sul temos o hábito atávico de comer pinhão, o fruto da conífera ancestral que povoa nossos campos. Tenho pra mim que comer pinhão é uma prática genuinamente telúrica, como poucas. 

Devaneava sobre o resultado de engolir sementes. O solo o faz e produz árvores. Nós não geramos, contudo, uma árvore sequer. Sementes não se assemelham às árvores. A araucária, adulta, parece não ter qualquer vínculo com a semente e assim se mantem até que apareçam as primeiras pinhas. Anos e anos são necessários para que esta árvore possa, enfim, dar de si.

Tenho por hábito plantar caroços de todo o tipo, de tamareira a caquizeiro, de jacarandá a abacateiro. Muitos são os insucessos, seja pelo manuseio errado, seja porque eram sementes de alguma forma esterilizadas como, provavelmente, as de tamareira. De qualquer forma, os fracassos não são motivo de escândalo quando se observa a prodigalidade da natureza, que despeja milhões de sementes para resultados até mesmo pífios. Em muitas de nossas cidades existem sibipirunas, que liberam uma infinidade de sementes. Quantas brotam? Poucas. Aliás, se brotassem todas, logo morreriam muitas. Porque se na comunidade humana o egocentrismo gera isolamentos, talvez também seja válida na natureza a frase de Lichtenberg: “Aquele que é apaixonado por si próprio, terá a vantagem de ter poucos rivais”.

A gralha azul enterra sementes da araucária e esquece boa parte delas, que podem então brotar. Ou seja, a gralha em sua previdência acaba por colocar-se a serviço do futuro. Nós devoramos o pinhão e assim impedimos sua brotação. Quando penso na cultura moderna, não raro decadente e por vezes até agonizante, sobretudo quando orientada apenas por números de audiência e faturamento, receio que muitas sementes culturais tenham destinos abreviados. Caruncham na estufa ou são meramente mastigadas por esta cultura de massa que nos domina.

A produção cultural tem se afastado das vilas em que vivemos, que um dia tiveram grupos de teatro amador. Cada vez mais os espetáculos se originam nos grandes centros e a consequência vem a galope: sobram sementes mofadas de espetáculos fracos, nos quais texto e atores ficam longe do protagonismo. Em geral tais eventos contam com o patrocínio de leis de incentivo, mas sua qualidade não é muito superior ao que mambembes e saltimbancos produziriam.

Livros e professores são sementes. Os bons exemplos também são sementes e por isto difundiram-se tanto as palestras dos vencedores no esporte, na arte e na economia. No mais das vezes confessam às plateias toda a sua carga de sacrifícios e renúncias, que lhes permitiram alcançar o topo, seja de uma cordilheira, para os mais destacados, seja o de uma colina, para os mais modestos. Todos, porém, têm a marca das noites mal dormidas, dos músculos e nervos retesados, dos desafios que assustam, dos riscos que amedrontam. São justamente louvados porque semearam num dos solos mais duros e áridos, que é aquele do qual brotam sucessos.

Se assim se admite com heróis e famosos, por que razão boa parte das pessoas anatematiza os santos? Seria ainda o reflexo das heresias iconoclastas? Por que razão, senão a cegueira dos tempos, nos acotovelamos para assistir depoimentos até simplórios e procuramos esquecer que um dia existiu Teresa de Ávila? Como podem os ambientalistas renegar São Francisco de Assis? Como podem os homens de cultura negligenciar Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino ou São Bento, padroeiro da Europa? Fazem parte do patrimônio espiritual da humanidade.

Não tenho dúvida de que o mundo seria melhor e sobretudo mais esperançoso se haurisse inspiração do acervo de exemplos que os santos nos legaram. No livro de Otto Maria Carpeaux, que homenageio com o título deste texto, o autor menciona “a queda apocalíptica do nosso mundo” e a busca do “nosso caminho nas trevas”. Os santos são lanternas poderosas, que iluminam caminhos. Afinal, segundo Carpeaux, “são os santos que transformam o mundo”.


J. B. Teixeira



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