Novo relatório da Fundação AIS
O mais recente relatório da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre vai ser apresentado em Portugal na tarde desta quarta-feira, 20 de novembro. Foto: Direitos reservados
“A pessoa que conseguir matar-me sabe que será aclamada como um herói”. Quem diria que esta frase saiu da boca de Mariam Lal, 54 anos, depois de ter sido nomeada enfermeira-chefe num hospital do Paquistão? Só quem soubesse que ela foi acusada de blasfémia pelos seus colegas de trabalho, que terão ficado furiosos com a atribuição do cargo de chefia a uma cristã. E que, por ter corrido o rumor de que ela arrancara do cacifo um autocolante com uma frase do Alcorão, a enfermeira esteve prestes a ser esfaqueada até à morte no próprio hospital, tendo apenas conseguido escapar com a ajuda de alguns amigos, e vivendo escondida – e aterrorizada – desde então. Mas quantos saberiam disto?
A história de Mariam é apenas uma das inúmeras histórias – verídicas – de perseguição contra os cristãos que a Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) denuncia no seu mais recente estudo, Perseguidos e Esquecidos? Um Relatório sobre os Cristãos oprimidos por causa da sua Fé 2022-24, e onde se conclui que, em mais de 60 por cento dos países analisados, as violações de direitos humanos contra cristãos aumentaram desde o período anterior em análise (2020-22).
O relatório de 44 páginas, que vai ser apresentado em Portugal na tarde desta quarta-feira, 20 de novembro, e a que o 7MARGENS teve acesso em primeira mão, examina a situação dos cristãos em 18 países considerados “particularmente preocupantes em termos de perseguição”, todos eles localizados em África, no Médio Oriente e na Ásia, com exceção da Nicarágua, que pela primeira vez figura neste estudo.
A apresentação acontecerá em Lisboa, às 17h30, no auditório do MUDE – Museu do Design, e contará com o testemunho do padre Jacques Arzouma Sawadogo, que vem do Burquina Faso para partilhar de viva-voz como é a vida dos cristãos no seu país, precisamente um daqueles em que mais se tem acentuado a perseguição religiosa.
“A situação dos cristãos em África tem vindo a piorar desde agosto de 2022”
Se é verdade que os cristãos não são as únicas vítimas dos conflitos armados nestas regiões, também é verdade que “tendem a ser desproporcionadamente visados pelos militantes”. Foto © ACN
O relatório documenta como, em maio do ano passado, “os jihadistas começaram a atacar a população cristã na província de Kompienga, no Burquina Faso oriental (…). Quando um grupo de mulheres cristãs tentou furar o bloqueio imposto pelos militantes, muitas delas foram mantidas em cativeiro e repetidamente violadas. Algumas das mulheres foram mantidas como escravas sexuais durante várias semanas antes de serem devolvidas grávidas à sua aldeia”.
Mais tarde, em novembro de 2023, “extremistas expulsaram mais de 340 cristãos da aldeia de Débé, no Noroeste do Burquina Faso. Os terroristas assassinaram dois adolescentes por terem desrespeitado a proibição de frequentar a escola, antes de darem ao resto da comunidade cristã um ultimato de 72 horas para partir”, pode ler-se no relatório.
Já este ano, “quinze fiéis morreram e dois ficaram feridos num ataque perpetrado por presumíveis militantes islamistas durante as orações de domingo, dia 25 de fevereiro, no interior de uma igreja católica em Essakane, no nordeste do Burquina Faso. Doze das vítimas tiveram morte imediata, enquanto três outras sucumbiram aos ferimentos no hospital”, continua o documento.
Exemplos não faltam, alerta a Fundação AIS, de que “a situação dos cristãos em África tem vindo a piorar desde agosto de 2022, com a militância islamista a emergir como principal motivo de preocupação”. De acordo com o relatório, nos últimos dois anos, “verificaram-se atos de violência jihadista e insurgente contínua na África Subsariana”. E se é verdade que os cristãos não são as únicas vítimas dos conflitos armados nestas regiões, também é verdade que “tendem a ser desproporcionadamente visados pelos militantes”.
A maior parte da atividade terrorista islamista decorreu na região do Sahel – especialmente no Burquina Faso, Mali, Níger e Nigéria –, mas também em Moçambique, sublinha o relatório. Para além do extremismo religioso, outros fatores que impulsionam a violência são as diferenças sectárias e étnicas, os conflitos pela posse de terras, a falta de acesso a recursos, a fragilidade dos governos nacionais, os movimentos separatistas e as alianças entre redes jihadistas transnacionais e gangues criminosos.
No Médio Oriente, cristãos enfrentam “ameaça existencial crescente”
“O genocídio que sofremos continua a ensombrar-nos”, escreve o arcebispo de Erbil, Bashar Warda, no prefácio do relatório. Foto © ACN
Uma das conclusões do relatório é que “o foco estratégico da agressão militante islamista transnacional contra os cristãos deslocou-se agora decisivamente do Médio Oriente para África”. Mas no Médio Oriente, “embora grande parte da ameaça islamista tenha diminuído, os países ainda estão a recuperar de anos de guerra e terror, e as populações cristãs em algumas áreas enfrentam uma ameaça existencial crescente”, alerta a Fundação AIS.
É o caso da Síria, cuja comunidade cristã “foi afetada de forma desproporcionada pela guerra civil”. Antes do início da guerra, em 2011, os cristãos eram mais de 1,5 milhões, atualmente são apenas 250 mil. E “embora o regime de Assad, que professa a tolerância religiosa, tenha recuperado o controlo da maior parte do território anteriormente controlado pelos jihadistas, os cristãos continuam a emigrar. Em abril de 2024, o núncio apostólico da Síria, cardeal Mario Zenari, declarou que 500 cristãos deixavam a Síria todos os dias”, sublinha o documento da organização católica.
Também no Iraque “a população cristã diminuiu drasticamente durante a ocupação brutal do Daesh e, atualmente, é constituída por menos de 200 mil pessoas numa população de mais de 45,5 milhões, ou seja, cerca de 0,46%”. Além disso, esta comunidade em declínio continua a enfrentar “uma pressão social e uma discriminação significativas, sendo a conversão do Islão ainda proibida por lei”, refere o relatório.
“O genocídio que sofremos continua a ensombrar-nos, pois a emigração dos cristãos continua, ao ponto de a Igreja estar ameaçada de extinção em vilas e cidades onde a nossa presença remonta quase ao tempo de Cristo”, escreve Bashar Warda, arcebispo de Erbil, no prefácio do relatório.
E mesmo em países do Médio Oriente onde a situação parecia estar a melhorar no que diz respeito à liberdade religiosa, como é o caso do Egito, os relatos não são animadores. “Há provas de raptos sistemáticos [de mulheres e raparigas cristãs coptas] por gangues e de que os agentes da polícia conspiraram para as dar como desaparecidas e não como raptadas”, além de vários casos de conversão e casamento forçados.
Na Ásia, só Vietname “melhorou ligeiramente”
Debruçando-se sobre a Ásia, o relatório demonstra que a situação vivida pelos cristãos piorou significativamente na China (onde as estimativas do número de pessoas presas devido às suas crenças religiosas “variam entre alguns milhares e mais de dez mil”), no Paquistão (onde, em agosto do ano passado, mais de 25 igrejas e 80 casas pertencentes a cristãos foram incendiadas quando uma multidão de milhares de pessoas armadas com explosivos e outras armas deu origem a uma onda de violência no distrito de Jaranwala, no Punjab), e na Índia (onde o ano de 2023 terminou com 720 ataques ou outros incidentes de perseguição contra cristãos registados em 23 estados – com pelo menos 287 incidentes ocorridos só no estado de Uttar Pradesh, no Norte do país).
A situação dos cristãos na Coreia do Norte e em Myanmar também foi avaliada pela Fundação AIS, que concluiu que nestes países não se verificaram alterações significativas face ao biénio anterior. No primeiro, “os cristãos praticantes podem ainda enfrentar várias formas de tortura nos campos de trabalho”, enquanto no segundo prosseguem os “ataques da junta militar a igrejas e outros locais de culto”.
Entre os países asiáticos analisados, só no Vietname a situação “melhorou ligeiramente”, com medidas tomadas para restabelecer as relações diplomáticas entre o Estado e o Vaticano, e para reduzir a burocracia relativa ao registo de grupos religiosos.
Opressão extrema na Nicarágua
“O presidente Ortega chegou mesmo a atacar verbalmente a Igreja Católica durante um discurso público”, denuncia o relatório. Foto © Cancillería del Ecuador
Já na Nicarágua, a situação não para de piorar. Num contexto de preocupação crescente com a opressão contra a Igreja em algumas regiões da América Latina, pela primeira vez nos 18 anos de história do documento Perseguidos e esquecidos?, o país foi incluído devido a uma série de medidas de opressão extrema contra os cristãos, nomeadamente a detenção e expulsão em massa do clero, incluindo todos os membros da Nunciatura Apostólica.
O relatório refere inúmeras situações de perseguição religiosa que o 7MARGENS tem vindo a noticiar. “O regime de Ortega-Murillo anulou o estatuto jurídico de inúmeras instituições ligadas à Igreja e comunidades religiosas, e confiscou os seus bens. Além disso, encerrou os meios de comunicação católicos e proibiu as celebrações religiosas em espaços públicos. O presidente Ortega chegou mesmo a atacar verbalmente a Igreja Católica durante um discurso público”, pode ler-se.
Lembrando o caso do bispo Rolando Álvarez, de Matagalpa, que foi condenado – sem julgamento – a 26 anos de prisão e destituído da cidadania pelas suas críticas ao Governo, e se encontra atualmente exilado no Vaticano, o relatório assinala que “a vigilância das paróquias católicas está a aumentar” e que “agentes do Governo assediam e intimidam regularmente o clero e os fiéis”, sendo que “os membros da Igreja que defendem publicamente os direitos humanos ou criticam o Governo podem enfrentar ameaças, violência física e detenção”.
O que se passa na Nicarágua contribui para as evidências crescentes de que os cristãos são a comunidade religiosa mais perseguida em todo o mundo, tanto em termos de número de pessoas quanto de países afetados, assinala o novo estudo da Fundação AIS.
Citados no relatório Perseguidos e Esquecidos?, os dados mais recentes do Pew Research Center, referentes a 2021, mostram que os cristãos foram vítimas de assédio motivado pela sua religião em 160 países, mais do que qualquer outro grupo religioso. Também o Papa Francisco, quando falava ao corpo diplomático do Vaticano em janeiro de 2023, afirmou que um em cada sete cristãos no mundo é oprimido pela sua fé, recorda o relatório.
Monumentos de vermelho para lembrar os perseguidos
Durante a #RedWeek (Semana Vermelha), vários monumentos em todo o mundo serão iluminados de vermelho. Foto © ACN
Para informar e sensibilizar a opinião pública para esta realidade que afeta milhões de pessoas em todo o planeta, mas que ainda é desconhecida por muitos, a Fundação AIS, além de apresentar o seu mais recente relatório, irá dinamizar a chamada #RedWeek (em português, Semana Vermelha).
Após a apresentação do documento, será iluminado de vermelho o monumento a D. José I na Praça do Comércio. Simultaneamente, no outro lado do Tejo, o Cristo Rei ficará iluminado da mesma cor, “como que a indicar a toda a capital a importância de se lembrar a perseguição religiosa e muito concretamente aos cristãos”, explica a organização católica, em comunicado enviado ao 7MARGENS.
Depois de Lisboa, a Fundação AIS vai apresentar o relatório em Santarém, Aveiro e Évora, respectivamente nos dias 21, 22 e 23 de novembro. Em todos os eventos – cujos horários e locais podem ser consultados na página da #RedWeek –, estarão a diretora da AIS em Portugal, Catarina Martins de Bettencourt, e o padre Jacques Arzouma Sawadogo, do Burquina Faso, país que está também no centro da Campanha de Natal deste ano da Ajuda à Igreja que Sofre.
E se em Portugal a Fundação AIS vai estar particularmente ativa ao longo da próxima semana, o mesmo irá suceder noutros países do mundo. Na Austrália, há já a garantia de que um total de 22 dioceses geográficas e cinco eparquias católicas orientais – o dobro do que aconteceu no ano passado – vão assinalar o evento, sendo que muitas delas iluminarão de vermelho as suas principais catedrais. Na Nova Zelândia, e pela primeira vez, duas dioceses também participarão nesta iniciativa. No Canadá, será celebrada “uma missa especial” em Montreal, no dia 20, e a cúpula do Oratório de São José, o maior santuário de São José do mundo, será iluminada de vermelho. Também em Toronto terá lugar uma vigília na quarta-feira. O Chile, país que tem assistido a repetidos incêndios de igrejas, e o México, onde foram assassinados padres por denunciarem a injustiça e lutarem pela dignidade humana, também participarão nesta iniciativa global. Na Colômbia, a Irmã Gloria Narvaez, que foi raptada no Mali por terroristas, partilhará o seu testemunho.
Mas a maior parte das atividades terá lugar na Europa. Além de Portugal, há iniciativas agendadas nos Países Baixos, Reino Unido, Bélgica, Itália, Malta, Eslováquia, Irlanda, Suíça e na Alemanha, em que centenas de igrejas serão iluminadas de vermelho. Em França, o secretariado local da AIS vai organizar uma sessão da Noite das Testemunhas, com relatos em primeira mão de vítimas de perseguição religiosa. Por sua vez, em Espanha além de vários outros eventos, será inaugurada uma exposição itinerante intitulada “A Beleza do Martírio”, e que estará patente em Madrid, Sevilha e Saragoça. A Catedral de Almudena, a Sagrada Família de Barcelona e a Basílica de Covadonga serão iluminadas de vermelho, tal como o Anfiteatro de Tarragona, que tem um grande valor simbólico, pois foi o local onde os primeiros mártires da atual Espanha foram mortos pela sua fé.