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domingo, 6 de março de 2016

Proteger os menores

Nota do Pe. Federico Lombardi, sobre o cardeal Pell e o compromisso da Igreja na luta contra os abusos de menores, à luz também do sucesso do filme prémio Oscar O caso Spotligh

  Igreja e Religião

ZENIT

Publicamos abaixo, integralmente, a nossa tradução de uma nota do diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, Pe. Federico Lombardi, sobre o recente acontecimento do cardeal Pell e o compromisso da Igreja na luta contra os abusos de menores, à luz também do sucesso do filme prêmio Oscar O caso Spotligh.

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Os depoimentos do Card. Pell perante a Comissão Real de Inquérito em conexão ao vivo entre a Austrália e Roma, e o prémio do Óscar para o melhor filme para Spotlght, sobre o papel do Boston Globe ao denunciar as coberturas dos crimes dos  vários sacerdotes pedófilos de Boston (especialmente entre os anos 60-80) foram acompanhadas por uma nova onda de atenção da media e da opinião pública sobre a questão dramática de abuso sexual de menores, em particular por membros do clero.

A apresentação sensacionalista destes dois eventos significou que, para a maioria do público – especialmente se menos informado ou de memória curta – a Igreja não tenha feito nada ou muito pouco para responder a estes dramas horríveis e que é necessário recomeçar do zero. Uma consideração objectiva mostra que não é assim.

O ex-arcebispo de Boston renunciou em 2002 na sequência dos acontecimentos narrados em Spotlight (e depois uma famosa reunião dos cardeais americanos convocada em Roma pelo Papa João Paulo II em Abril de 2002), e desde 2003 (ou seja, 13 anos) a Arquidiocese é governada pelo cardeal Sean O’Malley, universalmente conhecido pelo seu rigor e a sua sabedoria ao lidar com as questões dos abusos sexuais, tanto que foi nomeado pelo Papa entre os seus conselheiros e Presidente da Comissão constituída por ele para a protecção dos menores. Também os trágicos acontecimentos de abusos sexuais na Austrália foram objecto de investigações e processos judiciais e canónicos por muitos anos. Quando o Papa Bento XVI estava em Sidney para a Jornada Mundial da Juventude em 2008 (ou seja, há 8 anos) se encontrou com um pequeno grupo de vítimas na própria sede da arquidiocese governada pelo card Pell, dado que a história era já então de forte actualidade e o Arcebispo considerava muito oportuno tal encontro.

Só para dar uma ideia da atenção com que foram seguidos estes problemas, a única secção do site do Vaticano dedicada a “abusos em menores. A resposta da Igreja”, lançado há 10, contém mais de 60 documentos ou discursos.

O compromisso corajosamente dedicado pelos Papas para lidar com as crises surgidas em seguida em vários países e situações – como Estados Unidos, Irlanda, Alemanha, Bélgica e Holanda, Legionários de Cristo… – não foi pequeno e nem indiferente. Os procedimentos e normas canónicas universais renovadas; as orientações pedidas e formuladas pelas Conferências Episcopais, não só para responder aos abusos cometidos, mas também para prevenir-lhes adequadamente; as visitas apostólicas para intervir nas situações mais graves; a profunda reforma da Congregação dos Legionários, foram todas acções destinadas a responder com profundidade e com visão uma praga que se tinha manifestado com uma gravidade surpreendente e devastadora, especialmente em algumas regiões e em alguns períodos. A Carta de Bento XVI aos fiéis irlandeses de Março de 2010 continua a ser, provavelmente, o documento de referência mais eloquente, bem além da Irlanda, para compreender a atitude e a resposta jurídica, pastoral e espiritual dos Papas a este drama da Igreja do nosso tempo: reconhecimento dos graves erros cometidos e petição de perdão, atenção prioritária e justiça às vítimas, conversão e purificação, compromisso de prevenção e renovada formação humana e espiritual. Os encontros de Bento e de Francisco com grupos de vítimas acompanharam esta já longa estrada com o exemplo da escuta, da petição de perdão, do consolo e do envolvimento em primeira pessoa dos Papas.

Em muitos países os resultados do compromisso de renovação são encorajadores, os casos de abusos tornaram-se muito raros e, portanto, a maior parte dos casos que continuar a vir à luz são de um passado relativamente distante de várias décadas. Em outros países, normalmente por razão de situações culturais muito diferentes e ainda caracterizados pelo silêncio, há ainda muito trabalho a ser feito e não faltam as resistências e dificuldades, mas o caminho a ser percorrido ficou mais claro. 

A constituição da Comissão para a protecção dos menores, anunciada pelo Papa Francisco em Dezembro de 2013, constituída por membros de todos os continentes, indica o amadurecimento do caminho da Igreja católica. Depois de configurar e desenvolver dentro uma resposta decisiva aos problemas de abuso sexual a menores (por padres ou outros trabalhadores eclesiais), surge sistematicamente o problema não só de como responder bem ao problema em todas as partes da Igreja, mas também de como ajudar mais plenamente as sociedades em que a Igreja vive a enfrentar os problemas dos abusos e das violações realizadas a menores, dado que – como todos devem saber, embora ainda haja muitas vezes uma considerável relutância de admitir isso – em todas as partes do mundo a grande maioria dos casos de abuso não acontece em ambientes eclesiais, mas fora deles (na Ásia, podemos falar de dezenas e dezenas de milhões de crianças abusadas, certamente não em âmbito católico…).

Em suma, a Igreja, ferida e humilhada pelo flagelo dos abusos, pretende reagir não só para a sua própria recuperação, mas também para colocar a disposição a sua dura experiência neste campo, para enriquecer o seu serviço educativo e pastoral para toda a sociedade, que geralmente ainda tem um longo caminho a percorrer para dar-se conta da gravidade dos problemas e resolvê-los.

Nesta perspectiva os acontecimentos romanos dos últimos dias podem finalmente ser lidos em uma perspectiva positiva.

Deve-se dar crédito ao cardeal Pell de um testemunho pessoal digno e coerente (cerca de 20 horas de diálogo com a Comissão Real!) que mostrou mais uma vez um quadro objectivo e lúcido dos erros realizados em muitos ambientes eclesiais (neste caso na Austrália) nas décadas passadas. E esta é uma conquista não inútil na perspectiva da comum “purificação da memória”.

Deve-se dar também crédito a vários membros do grupo das vítimas que vieram da Austrália por demonstrarem a disponibilidade para estabelecer um diálogo construtivo com o próprio cardeal e com o representante da Comissão para a protecção dos menores – o Pe. Hans Zollner S.J., da Pontifícia Universidade Gregoriana – com quem puderam aprofundar perspectivas de esforços eficazes para prevenir os abusos.

Se, portanto, os apelos surgidos depois de Spotlight e a mobilização de vítimas e organizações por ocasião dos depoimentos do cardeal Pell contribuírem para apoiar e intensificar a longa caminhada da luta contra os abusos a menores na Igreja católica universal e no mundo de hoje (onde a dimensão destes dramas é ilimitada) sejam bem-vindos.


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