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quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Progresso

O homem chegou a casa cansado. Jantou com a família e ficou a trabalhar um pouco na mesa do quarto de estar. O filho mais novo entrou de rompante, saudoso da companhia do pai, mas este necessitava concentrar-se no texto que estava a redigir. Na esperança de ter o filho entretido, arrancou a folha de uma revista que tinha um mapa do mundo, mostrou-a ao filho, cortou-a em pedaços com uma tesoura, misturou os papéis e mandou ao filho que reconstruísse o mapa com a fita-cola que lhe forneceu. Pouco depois foi interrompido pela criança. A tarefa estava terminada. Já? O pai constatou a realidade, elogiou o filho e perguntou-lhe como conseguira ser tão rápido na construção do mundo se quase não olhara para ele. O filho explicou-lhe que no outro lado da página estava um homem que ele já tinha visto. Voltara os pedaços de papel ao contrário, colara-os, e ambos, o mundo e o homem, ficaram perfeitos. Sim, pensou o pai. Quando endireitamos o homem, endireitamos o mundo. Sempre que o homem melhora, o mundo melhora, progride.[1]

De facto, o homem é a única criatura que conseguiu, consegue e continuará a conseguir progredir e “dominar” o mundo. Porém, é necessário que o homem seja perfeito para que o mundo seja também perfeito, como na folha da revista do miúdo do conto. É esta a vocação do homem: “E criou Deus o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, e criou-os varão e fêmea. E Deus os abençoou, e disse: “Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a, e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movem sobre a terra...” (Gen. 1,27-29).

Quantos de nós, pessoas humanas, nos apercebemos de que temos uma vocação? Talvez pensemos que ter vocação é querer ser sacerdote, ou freira, ou missionário, ou eremita..., quando afinal a vocação é muito mais abrangente: “Criou Deus o homem à sua imagem”, isto é para ser santo, como Deus, para O imitar e obedecer, para imitar e obedecer, como os filhos devem fazer com os bons pais. É curioso notar como, desde o princípio, ainda antes do pecado original, “Deus criou o homem à sua imagem”. Sabemos que Deus é puro espírito e que o homem tem uma alma espiritual, mas... não estaria Deus a formar já os corpos de Adão e Eva à semelhança do corpo de Cristo Redentor? A palavra imagem só costuma ser aplicada ao que é material ou representa algo material, como os retratos, os filmes, os desenhos. Se assim for, a vocação humana, isto é, a vocação de qualquer homem ou mulher consiste em “crescei, e multiplicai-vos, e enchei a terra e sujeitai-a”.

Crescei. Crescer significa desenvolver, aumentar..., progredir. Também as plantas e animais crescem fisicamente como o homem, mas são incapazes de crescer espiritualmente, porque não foram criados à imagem de Deus. Têm um princípio vital a que se costuma chamar alma vegetal e alma animal, mas o homem possui alma espiritual. O seu espírito ajuda-o a usar a sua liberdade. O homem consegue trabalhar cansado, a transpirar, com dores nas costas..., porque quer, porque tem vontade, porque é livre. Consegue estudar mesmo quando lhe apetece ir ao cinema ou está com sono, porque tem vontade firme, porque quer progredir.

Multiplicai-vos. Também as plantas e os animais seguem esta lei da natureza, mas apenas materialmente, sem progresso, porque lhes falta a alma espiritual que torna o homem semelhante a Deus. Sempre que as pessoas se multiplicam em número, também se multiplicam os seus conhecimentos porque se ensinam uns aos outros. O progresso surge graças às pessoas, não com as plantas ou animais. Assim, todos os homens têm vocação para a filiação e para paternidade, para aprender e ensinar, para obedecer e mandar.

Enchei a terra... De quê? De pessoas, evidentemente, mas também de ciência, de sabedoria, de amor..., de progresso. Quem pode trazer ao mundo ciência e sabedoria? As pessoas. Só elas aprenderam a construir habitações apropriadas às necessidades climáticas, a usar modos de deslocação terrenos, aquáticos ou aéreos, a reconhecer as diversas capacidades humanas..., a partilhar conhecimentos, a educar, a colaborar, a ajudar, a amar.

...e sujeitai-a. Sujeitar a terra, toda a terra! Que tarefa enorme nos espera! Não se trata apenas de dominar o globo terrestre e de tudo o que contém, trata-se de dominar a minha terra, o barro, a matéria de que sou feita, eu, pessoa. O corpo é barro, muita água e bastantes minerais, mas inseparável da alma espiritual que o mantem vivo. Só se consegue progredir, seguindo a vocação para a santidade: vivendo em família, convivendo e trabalhando para colaborar no desenvolvimento do bem comum.

Isabel Vasco Costa


[1] Resumo do episódio narrado por Alfonso Aguiló em: “La Llamada de Dios, Anécdotas, relatos y reflexiones sobre la vocación”, Madrid, Mundo y Cristianismo, Palabra, 2ª edición, pg.371.


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