O jornalista de guerra Gian Micalessin conta o que viu nos territórios controlados pela milícia do Califado e analisa a atitude da Europa em relação à perseguição de cristãos
Roma, 05 de Novembro de 2014 (Zenit.org) Federico Cenci
Percorreu o planeta em comprimento e largura, passou por
diversos cenários de guerra e trabalhou com alguns dos mais importantes
meios de comunicação internacionais. Por mais de 30 anos escalado na
linha de frente do jornalismo de guerra, Gian Micalessin voltou há
poucos dias da sua última viagem, único ocidental a pisar em algumas
aldeias da Síria sitiadas pelo Estado Islâmico do Iraque e do Levante.
Diante dos olhos - os "olhos da guerra", como se chama o projecto crownfunding jornalismo
a que pertence, juntamente com o seu colega Fausto Biloslavo - ainda
tem pilhas de escombros deixadas pela milícia do Califado e os rostos
sofridos dos cristãos e curdos perseguidos. Realidades por muito tempo
ignoradas pela imprensa europeia, enganada pela sirene da chamada
"Primavera Árabe". É da análise desta ilusão que surge a entrevista
abaixo.
***
ZENIT: Há muitos cenários de guerra em andamento. Por qual motivo você voltou à Síria no mês passado?
Parecia-me um dever e significativo porque a Europa esqueceu há anos
que na Síria, na estrada de Damasco, começou a tradição cristã. Esqueceu
que os cristãos têm ali uma comunidade muito antiga. Esqueceu tudo isso
para tomar partido daqueles que defendiam supostos ideais de liberdade e
democracia. A Europa alimentou o nascimento de um Islão democrático que,
porém, nunca nasceu, e o que vemos diante de nossos olhos é, pelo
contrário, um Islão dos horrores que lentamente se desenvolveu dando vida
àquele monstro chamado Isis.
ZENIT: Você se reuniu com várias autoridades eclesiásticas na
Síria. Qual a percepção que eles têm com relação ao que está
acontecendo no Oriente Médio?
É muito parecida com a minha. Por três anos a Europa não quis
entender e nem sequer olhar para o que estava acontecendo na Síria,
apesar das autoridades eclesiásticas da Síria repetirem por muito tempo
que aqueles mesmos cristãos que durante as primeiras manifestações
estavam contra o regime de Assad, perceberam logo que estava brotando um
movimento armado no qual confluíam movimentos extremistas e jihadistas
de todo o mundo. Os cristãos tinham então advertido a Europa, explicando
que era melhor estar do lado de um regime que teria garantido a
convivência entre as várias comunidades, em vez de apoiar estes
assassinos. A ideia dos cristãos sírios é que diante destes alarmes a
Europa ficou cega e surda. Somente agora, finalmente, está abrindo os
olhos e está se dando conta do que realmente acontece.
ZENIT: Por exemplo, o que acontece na cidade de Qamishli?
Qamishli é a parte mais interessante da minha viagem, também porque é
diferente de Kobane (a cidade curda na fronteira turca assediada pelo
ISIS, ndr), onde, além da presença dos curdos existem cristãos. Está a
90 Km da fronteira com o Iraque e está localizada na fronteira com a
Turquia que, porém, está fechada. Os cristãos estão, portanto,
praticamente sitiados pelo Isis, que semeia o terror em todas as aldeias
circunvizinhas, tanto entre os cristãos e os curdos quanto entre os
sunitas que não aceitam o seu controle. Os cristãos, portanto, estão em
fuga, nos últimos dois anos do 40 dos 120 mil habitantes, a população
cristã foi reduzida à 20 mil. Vemos, portanto, um êxodo contínuo, com
ruas constantemente cheias de carros que fogem deste inferno. Qamishli é
um pouco um espelho de toda a Síria, porque também aqui, onde uma vez
os cristãos e os curdos se opunham ao regime de Assad, estão, hoje,
lutando do lado do regime em vez de aceitar o horror do Isis.
ZENIT: Portanto, também os cristãos foram às armas?
Exatamente. Os cristãos criaram uma milícia de auto-defesa com o
eloquente nome Suttoro, que significa justamente, na antiga língua
siríaca ‘protecção’. Eles defendem as pessoas, mas também os lugares
sagrados do Cristianismo, são cerca de 400 e têm um centro de
treinamento no quartel siríaco de Qamishli.
ZENIT: Em que condições se encontra Aleppo, terceira cidade cristã no mundo árabe depois do Cairo e Beirute?
Em Aleppo, a situação é relativamente melhor hoje, mas é necessário
considerar o que aconteceu nesta cidade nos últimos três anos,
especialmente no último. Ela foi isolada e trancado em um cerco que
apertava cada vez mais, por grupos jihadistas. Depois, na primavera
passada o cerco foi quebrado pelas tropas do governo que conseguiram
abrir uma estrada que consentiu novamente as conexões. O centro
histórico de Aleppo permanece, porém, sob cerco: quem se lembra dos
tesouros artísticos de Aleppo deve se esquecer porque não existem mais,
bem como, quem se lembra os bairros cristãos deve imaginar hoje um monte
de ruínas. Por exemplo, o bairro de Midan, coração comercial da
comunidade arménia, é uma região reduzida a escombros por causa das
agressões contínuas dos jihadistas. Portanto, também em Aleppo os
cristãos vivem a tragédia do êxodo, a comunidade cristã foi reduzida em
40% e o medo é que continue a diminuir.
ZENIT: O que foi que os ataques norte-americanos conseguiram contra o Isis?
O único sucesso foi o alcançado em torno de Kobane, que tem, porém,
um valor principalmente simbólico, porque esta cidade, estando já vazia,
não tem nenhum peso estratégico. É só aqui que os mísseis conseguiram
parar o assédio jihadista. Por exemplo, em Qamishli - onde Isis cresce -
eu não vi nem sequer um bombardeio americano.
ZENIT: Não está clara a atitude de um membro da NATO, como a Turquia, com relação ao ISIS...
A atitude, no mínimo ambígua, da Turquia é uma constante desde o
início do conflito. Não nos esqueçamos que os grupos jihadistas -
incluindo Isis - encontraram hospitalidade e acolhida no território
turco. É a partir das fronteiras turcas que, como demonstram os
documentos que me mostraram militares curdos, grande parte dos
combatentes estrangeiros passam para se alistar nas fileiras do Isis.
Evidente é o que aconteceu em Kobane, onde o exército turco ficou
observando enquanto a cidade era tomada pelo Isis. Os mesmos jornais
turcos, além do mais, relatam casos de hospitais turcos que acolheram e
cuidaram de militantes do Isis. Em suma, a atitude da Turquia vai além
da ambiguidade.
ZENIT: Em três anos de conflito você nota que tenha mudado a
atitude dos maiores meios de comunicação ocidentais com relação ao que
está acontecendo na região?
Por força mudou. Há três anos, os meios de comunicação ocidentais
fechavam os olhos, e acreditavam em um conflito onde o único culpado era
o regime de Assad, até mesmo confundiram os massacres actuais realizados
pelos rebeldes com os assassinatos feitos pelo governo. A ideia de
rebeldes democráticos acabou sendo uma ilusão. A realidade é de fato
outra: uma operação que começou no Egipto e criada pela Fraternidade
Muçulmana – com o apoio de Países como o Qatar e a Turquia – para
derrubar o regime de Assad substituindo-o por outro apoiado pela
Fraternidade Muçulmana. De democrático havia muito pouco.
ZENIT: Quais cenários futuro?
Os cenários futuros são extremamente negros porque existem diferentes
tonalidades de jihadismo, mas nenhum deles é moderado: vai do jihadismo
apoiado pela Arábia Saudita e implementado pelo ISIS a um regime como o
da Síria, que, para poder resistir teve que se aliar sempre mais com o
Irão assumindo uma posição linha-dura. O fim da guerra e uma Síria
pacífica e inter-confessional é um cenário muito distante.
(05 de Novembro de 2014) © Innovative Media Inc.
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