
As difíceis decisões do conclave (5)
Está decidido pela “maioria”: “Não se pode voltar atrás” em relação ao legado do Papa Francisco e o sucessor deverá ser alguém que garanta “a continuidade” das suas “linhas programáticas”. O cardeal António Marto, bispo emérito de Leiria-Fátima, dizia este domingo de manhã em Roma ao 7MARGENS, CNN Portugal e Renascença que a maioria do Colégio Cardinalício quer “alguém que transmita o rosto de proximidade de todos, de ternura e acolhimento, e de compaixão” característico do Papa Francisco.
Também o patriarca emérito de Lisboa, Manuel Clemente, diz que o sucessor de Francisco — que os cardeais elegerão a partir da próxima quarta-feira — será alguém de continuidade em relação ao que foi a “atitude do Papa” que morreu no passado dia 21 de Abril.
Independentemente de ser “um europeu ou um asiático” o escolhido, diz António Marto, “grande parte das intervenções” nas congregações gerais que preparam o conclave tem insistido na afirmação “da continuidade” com Francisco: “o povo de Deus deu um sinal no funeral”, acrescenta, justificando que a decisão do conclave não pode deixar de apontar nessa linha.
Américo Aguiar, bispo de Setúbal, acrescenta que a “continuidade está sempre garantida, seja Francisco, seja quem for, de acordo com aquilo que venha a ser a pessoa” escolhida.
Neste domingo, como é tradição antes do início das votações, os cardeais que participarão no conclave distribuíram-se pelas igrejas de Roma, das quais têm o título formal e simbólico. No final, os três que vieram de Portugal falaram com alguns jornalistas – o cardeal Tolentino Mendonça não celebrou na “sua” igreja de São Domingos e Sisto, que tinha um fim-de-semana de retiro, e foi impossível saber onde celebraria.
Nenhum dos três quis fazer prognósticos, mas o bispo emérito de Leiria arrisca dizer que “a Igreja e o mundo deixaram de ser eurocêntricos” e que “o eixo económico-financeiro e porventura cultural está a passar para a Ásia”. Por isso, o cardeal Marto não se admirará se o escolhido vier da Ásia – mas também “que possa ficar na Europa”. África, acredita, “também tem riqueza”, mas “ainda não chegou o tempo”.
O patriarca emérito de Lisboa alinha pela mesma leitura: “A Ásia, em termos mundiais, será o continente do futuro – só a China e a Índia juntas levam um terço da população” do globo; por isso o cardeal Clemente também não se importaria de ver como Papa “alguns dos colegas cardeais da Ásia”, tendo em conta as características de diversas biografias.
Américo Aguiar, por seu lado, admite que continua “sem conhecer a maior parte” dos colegas cardeais que “sentem a sua pequenez, a sua responsabilidade” ao integrar o conclave – 133 no total, excluídos os dois que não participarão por razões de saúde. Mas também acrescenta que a sua participação nas congregações gerais o fez entender “finalmente o que significa o todos, todos, todos, e o que significa na prática as periferias geográficas, existenciais e eclesiais”. E os cardeais de mais de 70 países “olham para as pessoas, escutam os gritos e sentem no seu coração as mesmas coisas, de maneira diferente”.

António Marto e Tolentino Mendonça: cardeais portugueses não querem fazer prognósticos sobre Papa. Foto © Arlindo Homem
Continuidade de prioridades com pontificado de Francisco
O que se tem passado nas congregações gerais – as reuniões preparatórias do conclave que decorrem até terça-feira – “vai convergindo para uma silhueta, um perfil, que continue esta atitude pastoral do Papa Francisco: preocupação com todos e cada um”, sintetiza o cardeal Clemente.
De facto, olhando para os resumos que a Sala de Imprensa do Vaticano tem distribuído, a maior parte dos temas tratados pelos cardeais nas suas intervenções sugerem uma continuidade de prioridades com o pontificado que há dias terminou com a morte de Jorge Mario Bergoglio, o primeiro Papa jesuíta, o primeiro argentino e o primeiro do hemisfério Sul.
Na última segunda-feira, 28 de Abril, decorreu a primeira reunião que os cardeais começaram a debater o futuro da Igreja, depois do funeral de Francisco, que se realizara no sábado anterior. Nessa ocasião, foram debatidos “temas de particular relevância para o futuro da Igreja: a relação com o mundo contemporâneo e alguns dos desafios que se colocam, a evangelização, a relação com as outras religiões, a questão dos abusos”. Nesse contexto, debateram-se “as qualidades” que o sucessor de Francisco deverá ter “para responder eficazmente a estes desafios”.
A evangelização – ou seja, o anúncio da mensagem do Evangelho no mundo contemporâneo – voltaria a ser tema dois dias depois, “com insistência na necessária coerência entre o anúncio do Evangelho e o testemunho concreto da vida cristã”, dizia o comunicado, numa linguagem onde ressoam muitas das expressões de Francisco.
O tema surgiria de novo na sexta-feira, dia 2 de Maio, desta vez como tema central do pontificado do Papa Francisco e com foco nos jovens: “uma Igreja que seja uma comunhão fraterna e evangelizadora, capaz de falar sobretudo às novas gerações”. Na mesma linha, houve ainda, no mesmo dia, intervenções sobre “a urgência de comunicar eficazmente o Evangelho a todos os níveis da vida da Igreja, desde as paróquias até à cúria, recordando que o testemunho do amor recíproco é o primeiro anúncio, como nos recorda o Evangelho”.
Terça-feira, 29, os temas tratados indicam horizontes semelhantes: “O papel da Igreja no mundo actual e os desafios que enfrenta” foi encarado a partir de “diferentes perspectivas, enriquecidas pelas experiências e contextos dos vários continentes, interrogando-se sobre a resposta que a Igreja é chamada a dar nestes tempos”.
Na quarta-feira, 30 de Abril, alguns temas abordados indiciam ainda modos de ver “franciscanos”: “a reflexão sobre a eclesiologia do Povo de Deus, com particular referência ao sofrimento causado pela polarização na Igreja e pelas divisões na sociedade”, temas aprofundados muitas vezes pelo Papa Francisco.
“O valor da sinodalidade, vivida em estreita ligação com a colegialidade episcopal, como expressão de uma corresponsabilidade diferenciada” foi outra das referências nos debates. Tema do Sínodo dos Bispos de 2021-24 (que contou também com a participação de padres, religiosos/as e leigos/as), a sinodalidade, foi uma das grandes apostas de Francisco e um dos temas mais fortemente criticado por sectores imobilistas da Igreja. O assunto voltou a surgir no dia 2, declinado “na sua relação com a missão, a colegialidade e a superação do secularismo”.
Também no dia 30, “a questão das vocações sacerdotais e religiosas foi abordada em várias ocasiões, considerada em relação à renovação espiritual e pastoral da Igreja” e “várias intervenções fizeram referência explícita aos documentos do Concílio Vaticano II, especialmente às Constituições Apostólicas Lumen Gentium e Gaudium et Spes”. No primeiro destes documentos, muda-se o paradigma de como a Igreja se entende a si mesma, passando de um modelo piramidal para uma visão de círculos concêntricos, em que cada baptizado tem o seu lugar em igual dignidade, e com diferentes serviços.
Ainda na congregação de sexta-feira, a penúltima até agora realizada, foram tratados “temas de particular relevância para o futuro da Igreja”. (ver 7MARGENS) Além da evangelização, já referida, outros assuntos abordados nesse dia foram as “Igrejas do Oriente, marcadas pelo sofrimento mas também por um forte testemunho de fé”, a par de “alguns elementos de contra-testemunho, como os abusos sexuais e os escândalos financeiros”. Nas declarações aos jornalistas após a reunião dos cardeais, o porta-voz do Vaticano, Matteo Bruni, referiu que estas questões foram abordadas como “uma ferida” que deve ser mantida “aberta”, para que “a consciência do problema permaneça viva e se possam identificar caminhos concretos para a sua cura.”
No sábado, dia 3, surgiram ainda temas como a “centralidade da liturgia, a importância do Direito Canónico”, a par da “hermenêutica da continuidade” entre os pontificados de João Paulo II, Bento XVI e Francisco.

Consistório de dezembro de 2024 criou novos cardeais: cerca de 80% no conclave foram escolhidos por Francisco, Foto de arquivo © Vatican Media
A pista dos dólares
Um dos temas porventura mais complexos que os cardeais – e o futuro Papa – têm pela frente – foi tratado logo na segunda-feira, 28: o Vaticano tem tido, nos últimos anos, um défice de mais de 80 milhões de euros por ano. O problema motivou várias intervenções de responsáveis por esse sector, conforme se pode ler no comunicado que resume a congregação geral desse dia.
Cinco cardeais intervieram neste aasunto: o alemão Reinhard Marx, coordenador do Conselho para a Economia, “apresentou um quadro actualizado dos desafios existentes e das questões críticas, oferecendo propostas orientadas para a sustentabilidade e reiterando a importância de que as estruturas económicas continuem a apoiar de forma estável a missão do papado”; o norte-americano Kevin Farrell, referiu o papel e actividades do Comité de Investimento, que preside; o austríaco Christoph Schönborn, presidente da Comissão dos Cardeais para a Supervisão do Instituto para as Obras de Religião (o “banco” do Vaticano), falou sobre este organismo; o espanhol Fernando Vérgez Alzaga, presidente emérito do Governatorato do Estado da Cidade do Vaticano, referiu algumas obras de renovação de edifícios e a situação desta estrutura e o esmoleiro do Papa, o polaco Konrad Krajewski, descreveu também o trabalho do Dicastério no serviço a populações desfavorecidas, como as pessoas sem-abrigo à volta do Vaticano, ou as vítimas de guerras como na Ucrânia, onde ele se deslocou várias vezes como enviado de Francisco.
O problema económico não é de somenos. De tal forma que vários analistas e alguma imprensa italiana falam do cardeal Robert Francis Prevost, dos Estados Unidos, como um nome importante na “corrida” à sucessão de Francisco. Visto como administrador rigoroso e hábil, a sua eleição poderia garantir conseguir fundos junto de magnatas dos EUA, consideram alguns.
Sem referir esse nome, William Cash publica no Sunday Times deste domingo um trabalho com o sugestivo título “Para entender a política do Vaticano, sigam o dólar americano” (só para assinantes). Nele conta a realização de uma recepção de milionários católicos dos EUA, em Roma, nesta última semana. Durante o encontro, um deles terá dito ao jornalista: “Esta sala pode angariar mil milhões para ajudar a Igreja, desde que tenhamos o Papa certo.”
Prevost esteve dez anos no Peru e é visto como um bergogliano moderado. Não seria certamente o “papa certo” desejado por esse grupo. Mas que há pressões a serem feitas ao mais alto nível, não há que ter dúvidas. A macacada da autoria do actual inquilino da Casa Branca nas contas oficiais da Presidência dos Estados Unidos, aparecendo vestido de papa, é mais uma prova disso mesmo. Faltam poucos dias para saber o que decidirá o conclave: se sujeitar-se a essas pressões ou abraçar os horizontes missionários e evangelizadores que Francisco trouxe ao catolicismo.
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