O vigário apostólico de Aleppo dos Latinos explica os efeitos positivos
da trégua, mas lamenta a conivência estrangeira com o Estado Islâmico e
pede que “se deixe o povo sírio decidir por si”
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| Aleppo - Flickr |
Estava programada para esta semana uma visita à Itália de dom Georges
Abou Khazen, o vigário apostólico de Aleppo dos Latinos. O bispo
participaria de uma celebração de quaresma e de uma série de
conferências para relatar o drama vivido pelo povo da Síria,
especialmente pelas minorias religiosas como os cristãos.
No entanto, esse mesmo drama forçou dom Abou Khazen a cancelar a
viagem à Itália. Por telefone, ele anunciou que “Aleppo não tem vias
percorríveis neste momento” e que “a única estrada que liga a cidade
ao sul do país foi liberada pelo exército regular, mas as outras ainda
estão sob o controle das milícias armadas”. Dom Abou Khazen também
explicou que Aleppo está impedida de receber suprimentos e ajuda
humanitária.
ZENIT entrou em contacto com ele para saber como a situação está se
desenrolando e quais são as esperanças do povo sírio quanto às
negociações de paz a ser retomadas no dia 9 de Março, em Genebra.
ZENIT: Excelência, o que está acontecendo em Aleppo neste momento?
Neste momento, em Aleppo, a situação está menos difícil e menos grave
do que alguns dias atrás. O exército regular conseguiu romper o cerco e
liberar a única estrada que liga Aleppo às outras partes da Síria, que o
Estado Islâmico e a Frente Nusra tinham ocupado parcialmente. Agora os
suprimentos, comida, combustível etc. estão chegando à cidade. Mas ainda
estamos há seis meses sem energia eléctrica e há cerca de dois meses sem
água. Nos últimos dias, os bombardeamentos de bairros civis diminuíram
significativamente.
ZENIT: Então a trégua começada no sábado passado está tendo efeitos positivos?
A trégua está tendo efeitos muito positivos: ela parou os rios de
sangue e está evitando mais mortes, destruição e muita dor e sofrimento.
Ela está incentivando também o processo de reconciliação entre os
sírios em várias partes da Síria, além de dar impulso às negociações
planeadas. Esta trégua está permitindo que a ajuda humanitária chegue
às áreas sitiadas. Só esperamos que o cessar-fogo dure.
ZENIT: Sua Excelência acredita, como disse recentemente o
presidente Bashar al-Assad, que a catástrofe humanitária na Síria se
deve não só à guerra, mas também ao embargo imposto pelos países
ocidentais?
Nós dissemos desde o início que o embargo imposto pelos países
ocidentais é um crime! Esse método não ajuda nunca. Como sempre, quem
sofre e paga as consequências é só o povo. Todo o povo, mas
especialmente os mais pobres e vulneráveis: nós mendigamos para ajudar
as pessoas, que passam fome, enquanto, por causa do embargo, centenas de
milhares de sírios que trabalham no estrangeiro não podem transferir um
centavo para as suas famílias na Síria. Milhares de estudantes sírios
que se especializam no exterior têm que interromper seus estudos porque
as famílias não podem enviar o dinheiro, nem o governo pode pagar as
bolsas de estudos para muitos deles. As pessoas passam frio; no inverno,
Aleppo tem temperaturas abaixo de zero, sem poderem ter nem diesel nem
gás para o aquecimento. Para não falar da falta de medicamentos,
máquinas necessárias para hospitais, peças de substituição etc… Eu quero
saber: depois de ter causado essas catástrofes, o embargo conseguiu
trazer a paz e resolver o conflito?
ZENIT: Mudou alguma coisa nos últimos cinco meses, desde o início da intervenção russa?
Nos últimos cinco meses, desde o início da intervenção russa, muitas
coisas mudaram. Nos 18 meses de intervenção da chamada coligação
internacional contra o Estado Islâmico (liderada pelos EUA e seus
aliados, ndr), os terroristas tinham ocupado 50% dos territórios não
controlados pelo governo. Nestes últimos cinco meses de intervenção
russa, o EI perdeu 20% do território que ocupava, e os outros grupos
jihadistas, como a Frente Nusra, também perdem posições. O exército
regular pôde avançar e libertar muitas vilas e cidadezinhas, permitindo o
regresso dos refugiados. Além de tudo isso, foi possível reabrir as
escolas nesses lugares e levar as crianças de volta para as salas de
aula depois de alguns anos de abandono. E eu quero recordar que temos de
reconhecer à Rússia o especial empenho nas negociações e na trégua.
ZENIT: Em ocasiões anteriores, Sua Excelência falou da guerra
na Síria como uma “guerra por procuração”. Que países estariam
envolvidos? E com que finalidade?
O meu julgamento não foi temerário. Os factos provam esta afirmação e
todos os meios de comunicação já confirmam isso. Os próprios países
envolvidos confessam, começando pelos Estados Unidos e passando por uma
série de países europeus, pela Turquia, pela Arábia Saudita, pelo Catar…
ZENIT: A quais fatos Sua Excelência se refere?
O que eu digo pode ser facilmente deduzido da análise de alguns
aspectos dessa guerra: como é que foi possível que dezenas de milhares
de combatentes estrangeiros conseguissem atravessar as fronteiras até
chegar na Síria? Quem os armou e treinou? Como eu disse, durante a
intervenção da assim chamada coligação internacional contra o EI,
liderada pelos EUA, o EI ocupou 50% da Síria! A metade do território! E
eu acrescento: quem é que está comprando o petróleo do EI, a custos
baixíssimos? Quem está comprando os tesouros arqueológicos roubados pelo
EI no Iraque e na Síria? Os únicos que combatem o EI em campo são os
curdos e o exército regular sírio. Enquanto isso, a Turquia está
bombardeando os curdos e os EUA não querem nem saber do exército
regular…
ZENIT: Em 9 de Março, em Genebra, vão ser retomadas as negociações de paz para a Síria. Qual é a sua esperança?
Nós temos uma forte esperança. Esperança de que os sírios finalmente
se vejam livres para negociar e decidir por si mesmos, sem a imposição
dos interesses de potências regionais estrangeiras. Esta é a condição
para que os diálogos sejam fecundos. Os sírios já estão cansados desta
guerra absurda, e mais cansados ainda dos muitos combatentes
estrangeiros presentes na Síria para criar o caos e impor a sharia.
ZENIT: Sua Excelência acha que os cristãos sírios estão destinados a um futuro distante da sua própria terra?
Infelizmente, muitos cristãos já deixaram a Síria e o Iraque para
procurar um futuro em outro lugar, longe da sua terra. Mas outros estão
determinados a permanecer apesar de tudo. O nosso futuro está nas mãos
do bom Deus, que, no Antigo Testamento, realizou o seu plano de salvação
através do pequeno resto que ficou ou voltou do exílio. A Síria é a
Antioquia de onde, após Jerusalém, partiu a proclamação da Boa Nova, e
onde os discípulos de Jesus foram chamados pela primeira vez de
cristãos. E eu não acho que esse nome e esses discípulos vão
desaparecer. Vamos continuar a dar testemunho no Oriente. São Paulo se
converteu às portas de Damasco e nosso Senhor é capaz de enviar outros
Paulos.
in

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