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domingo, 25 de agosto de 2019

Velhas missões na nova evangelização de Angola – Crónica de viagem

Os Missionários do Espírito Santo chegaram a Angola em 1866 e encontraram a então colónia portuguesa completamente abandonada em termos religiosos. Ali começou uma nova era, a chamada ‘segunda evangelização’ que muitos consideram ser a primeira, no que diz respeito a uma real presença da Igreja neste território africano.
Nos primeiros cem anos – como conta a história escrita por Cândido Costa (Cem anos dos Missionários do Espírito Santo em Angola 1866-1966, Nova Lisboa, 1970, ed. Espiritanos em Angola) – foram fundadas centenas de missões e postos missionários, quase sempre com escola, posto de saúde, oficinas e agricultura. O desenvolvimento integral é imagem de marca destes missionários vindos de diversos países da Europa. O ‘feminino’ também foi tomado muito a sério com a chegada das Irmãs de S. José de Cluny, há mais de 100 anos, a que se juntariam, com o andar dos anos, largas dezenas de congregações. Os capuchinhos chegaram e trabalharam sobretudo no norte de Angola. Depois, muitas outras congregações se instalaram e lançaram ao trabalho missionário. Mais de metade dos angolanos afirmam-se católicos e a Igreja Católica tem uma implantação nacional.
Assim nasceria uma Igreja local diocesana forte. Hoje há dezoito dioceses, todas elas com clero, seminários e boas estruturas pastorais. A Conferência Episcopal tem uma voz profética muito interveniente e respeitada. Os seminários, bem como as casas de formação de religiosos, estão a abarrotar de jovens. As celebrações são vivas e de igreja cheia. Há um dinamismo enorme de movimentos de apostolados e grupos paroquiais. Há compromissos pastorais nas áreas de educação, saúde e cidadania.
Tive a alegria de percorrer boa parte deste grande país por causa de questões de justiça, paz, boa governação, ecologia integral, diálogo ecuménico e inter-religioso. Estes foram os temas tratados em simpósios realizados em Luanda, Ndalatando, Malanje, Benguela, Lobito, Huambo, Chinguar, Lubango, Munhino, Kikolo e Cabinda. Assim pude encontrar muitos missionários, em missões antigas e novas. Vou partilhar o que vi, ouvi e vivi em algumas das missões mais históricas deste país.

Dos musseques de Luanda ao “há futuro” em Ndalatando
O padre Aristides Neiva num dos musseques de Luanda. Foto © Tony Neves

A cidade colonial estava pensada para umas 150 mil pessoas. Hoje, Luanda terá mais de quatro milhões de habitantes, embora não haja número que resista às lógicas do musseque. Com o amontoar de povo num espaço tão reduzido, também se amontoaram os problemas. Ainda no tempo colonial, as periferias de Luanda começaram a crescer com a vinda de pessoas para trabalhar na capital. Mas foi sobretudo o tempo da guerra civil que trouxe multidões até Luanda e fez os musseques tornarem-se enormes. Os Missionários Espiritanos têm a responsabilidade pastoral de dois dos maiores e mais emblemáticos: Prenda e Rocha Pinto. Ali trabalha, entre outros, o padre Aristides Neiva que, em 1997, reabriu a Rádio Ecclesia – Emissora Católica de Angola.
São muitíssimos milhares de pessoas, na sua maioria gente pobre à procura das oportunidades que nunca aparecem. Muitas congregações, masculinas e femininas, dão o seu melhor nestes e nos outros musseques que fazem um colar à volta da cidade.
O P. Benedicto Sanchez, espanhol, chegou a Angola nos tempos duros da guerra civil. Nesta cidade interior encontrou centenas de crianças abandonadas. Assim lançaria as bases de um movimento a que chamou ‘Ana Itungu’, ou seja, ‘órfãos’. Desenvolveu linhas de apoio a estas crianças que reunia, alimentava, vestia e dava formação, contando com apoios de Espanha. Escreveria livros e publicaria discos com canções interpretadas pelas crianças.
Após alguns anos em Espanha, regressou no final da guerra civil e, em Malanje, passou anos a formar militares para a reconciliação. Agora está de regresso a Ndalatando para trabalhar na Missão Católica local: “A situação das crianças e dos militares está muito melhor agora. Há futuro!”, diz ele.

As quedas de Malanje e as vozes do litoral
O padre Manuel Viana em Kalandula. Foto © Tony Neves

Deveria ser local de visita de todos os turistas: tem as quedas de Kalandula, as pedras negras de Pungo Andongo, os rápidos do Kuanza, a reserva de Kangandala… Mas é um interior pobre e abandonado. Os anos de guerra civil mataram muita gente e semearam pobreza. Há 50 anos, o padre Manuel Viana lutara contra ventos e marés pela dignificação deste povo. Durante a guerra civil alimentou centenas de órfãos, sobretudo crianças, o que faz dele um ‘pai’ para o povo malanjino.
Basta atravessar a cidade ao lado dele para ouvir dezenas de vezes o grito do seu nome. Mas agora está na missão de Kalandula, ali mesmo por cima das quedas de água. Apoia as comunidades que se estendem até à fronteira do Congo. Está cansado e doente e sempre a lamentar-se‘As escolas ainda não abriram o ano lectivo em boa parte das comunidades do mato!’.
Benguela é hoje a segunda cidade do país, à beira mar plantada. Os Missionários Espiritanos têm a responsabilidade pastoral do Pópulo, uma igreja que os portugueses construíram há mais de 400 anos. No Lobito, nos morros povoados durante a guerra civil, há milhares e milhares de pessoas a lutar pela sobrevivência, com o apoio da Igreja. O pároco, padre João Marques, lamenta as péssimas condições de vida das pessoas: “A habitação é pobre, os jovens não têm emprego, sobreviver é complicado.”

A cidade mártir, os sobreviventes e o cemitério do celeiro
A guerra civil, sobretudo os grandes combates que destruíram a cidade em 1993, tiraram ao Huambo o estatuto de segunda cidade do país. Há muita gente sempre a circular, mas as periferias aumentam e as bolsas de miséria são enormes. Num dos dias desta minha viagem, morreu um irmão de um espiritano, jovem advogado, assassinado por jovens por causa de um telemóvel. O padre António Jacinto, pároco da Tchiva, paróquia de periferia onde se realizou o funeral, confessava: “O crime aumenta em flecha e o que preocupa é que os maiores criminosos são adolescentes e jovens’.
O padre Agostinho Loureiro, em Angola há mais de 50 anos, acompanhou o assassinato de um irmão (também ele espiritano) e foi vítima de uma mina anti-carro e de alguns ataques nas estradas: “Sobrevivi, não sei ainda bem como nem porquê”, confessa. Agora está no Chinguar, onde lançou as bases de um santuário com culto que já vem do tempo colonial: o de Nossa Senhora de Fátima do Monte Tchimbango. É uma maravilha da natureza aquele morro de onde se veem quilómetros e quilómetros a toda a volta. Ali houve grande celebração a 13 de maio.
Entre o Huambo e Lubango está Caconda, uma missão centenária dos Espiritanos, antigo “celeiro” de Angola. Visitá-la implica longas horas de carro. Ao chegar, além do imponente edifício da Igreja, podemos visitar o cemitério onde jazem dois irmãos comidos por leões e dois missionários assassinados nos alvores quentes da independência.
Igreja de Caconda. Foto © Tony Neves

A guerra colonial “visitada” por Miguel Torga
A cidade, “vigiada” por um Cristo-Rei que a domina, é porta de saída para o mar do Namibe, estrada que obriga a passar na Serra da Leba, um dos ex-libris de Angola. Também somos obrigados a visitar a Fenda da Tundavala e o Santuário da Senhora do Monte. Junto da Tundavala, o padre Manuel Teixeira recorda os duros tempos da guerra civil onde muitos corpos foram lançados naquela vala funda, ainda hoje inacessível.
Não muito longe da cidade está a histórica missão da Huíla, cujo cemitério foi visitado por Miguel Torga, que registou no seu Diário XII: “Depois do aéreo deslumbramento do maciço da Chela e do abissal fascínio da Tundavala, a rasa emoção do cemitério da Missão católica da Huila. Aqui jaz…aqui jaz…aqui jaz… E são nomes de todas as nacionalidades, portugueses, belgas, franceses, alemães, inscritos lado a lado em humildes lousas iguais, seguidos de uma inscrição trágica: falecido com 24 anos, com 45, com 51, com 32… Nomes de homens que vinham ao encontro da morte certa e prematura por conta de Deus e dos seus semelhantes. Por conta da fé, da esperança e da caridade.”(Miguel Torga, Diário, Publicações Dom Quixote, Vol. IX-XVI (1964-1993), 2ª ed. 1999, pp.1251-1352).

Ruínas da igreja de Landana, em Cabinda. Foto © Tony Neves
 
Cabinda ou Catalunha?
Conhecemos a sua história antiga e recente e os anseios de muitos cabindenses à independência. Lândana, a caminho do Congo Brazzaville, é a igreja mais antiga dos espiritanos lusófonos, construída pelos franceses há mais de um século. Ruiu há alguns meses, pouco antes de Notre-Dame de Paris ter ardido, criando consternação geral e obrigando o Governo a encarregar-se da sua reconstrução.
Cabinda começa a dar passos para a normalização da sua relação com a hierarquia da Igreja e com a nova governação. Mas, num dos encontros, um jovem professor perguntou-me: “Acha que há alguma relação entre Cabinda e a Catalunha?”
Catedral de Cabinda. Foto © Tony Neves

Dos centros modernos às periferias de pobreza
Um mês de Angola provocaram em mim muitas impressões. As longas e distendidas conversas tidas ao longo desta visita ajudaram-me a perceber como está o país e a que desafios é urgente responder.
Cheguei a Luanda em plena crise dos combustíveis, uma “guerra” que levou à demissão das grandes chefias da Sonangol, a empresa pública que gere os petróleos. O país tinha parado e a reposição de combustível nas bombas foi lenta. Basta ver que, oito dias depois, cheguei à missão de Kalandula, na província de Malanje e não havia sequer gasóleo para o gerador eléctrico, numa área onde a electricidade na chega.
Enchem os olhos de beleza as paisagens de sonho deste país, que tem como expoente de atracção as quedas de água de Kalandula.
Dá felicidade estar com um povo simples mas muito alegre, que canta e dança, que gosta de fazer festa e acolher bem, fazendo as visitas sentir-se sempre em casa.
É bom viajar, embora muitas estradas não estejam em bom estado e haja troços de 30 ou 40 quilómetros de terra batida em estradas que ligam grandes cidades: por exemplo, entre Huambo e Lubango. Percorri milhares de quilómetros, de norte a sul, mas nota-se muita indisciplina nos condutores, sobretudo os das carrinhas de passageiros e nas moto-táxi. Vemos as pessoas a percorrer a pé estas estradas, transportando sempre muitas coisas à cabeça, acompanhadas de crianças e animais. Também vemos os carros a desviar-se constantemente dos cabritos, porcos, galinhas que atravessam as ruas aos ziguezagues, bem como cobras e outros animais. E, sobretudo no sul, há que parar muitas vezes para não atropelar manadas de bois! É ainda pitoresco ver as pessoas a utilizar o alcatrão das bermas para pôr a secar a farinha de mandioca…
Impressiona o contraste gritante entre os centros históricos das cidades (regra geral modernos, construções de qualidade, estradas com bom piso, lojas bonitas, limpeza) e as periferias enormes a abarrotar de povo e problemas (barracas como habitação, carreiros de terra e lama entre as casas, ausência de água canalizada, saneamento, muita falha de eletricidade – onde há –, pobreza generalizada, violência, álcool…).
As periferias de Ndalatando. Foto © Tony Neves

Esperança e futuro
Sabe bem percorrer os caminhos de Angola e ver centenas de crianças na rua a caminho da sua escola, com a cadeira ou banco à cabeça. Mas dói continuar a ouvir dizer que muitas aldeias não têm escola, muitos jovens e adultos não conseguem emprego, a saúde não responde pelas doenças, as condições de habitação condigna está longe de ser para todos.
A saúde deixa ainda muito a desejar e as doenças crónicas continuam à solta, com surtos frequentes de malária e de cólera. A Televisão Pública (TPA) apresenta pequenas “reportagens” de sensibilização para a limpeza e cuidados de higiene que ajudem a combater estas pandemias.
As tradicionais queimadas continuam a encher o céu de fumo, a poluir imenso e a atacar a biodiversidade, impedindo também o crescimento de árvores.
Há ainda muita instabilidade social e insegurança, com numerosos assaltos, muitos deles violentos, que resultam na morte ou ferimentos graves nas vítimas. Serve o exemplo dado acima do advogado, irmão do espiritano que foi morto à facada no Huambo, quando resistiu a dar o telemóvel aos bandidos!
É ainda uma constante ouvir da boca dos velhos missionários histórias que já não falam de leões e hipopótamos, mas dos tempos da guerra civil que semeou morte e destruição por onde passou, deixando gravadas memórias dolorosas que o tempo não vai nunca apagar.
A nível político, sente-se no ar muita tensão, com as constantes demissões a que o Presidente João Lourenço obriga e os rumores de mais uma ou outra operação que dê transparência e mostre que o tão falado combate à corrupção não é mera operação de cosmética. Gostei de ver e rever uma publicidade animada que fala da lavagem de dinheiro como crime grave praticado pelo “dr. Fernando”, um dos grandes deste país. Passa muitas vezes na Televisão Pública de Angola.
Em suma, Angola transpira esperança e futuro por todos os poros. Para tal basta ver a quantidade de crianças e jovens que se preparam, apesar de tantas dificuldades, para fazer deste país uma terra de paz e de progresso.
O padre Tony Neves com um grupo de jovens angolanos, no final de uma eucaristia, no Huambo. Foto © Tony Neves

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