Oportunidade de
manifestar solidariedade na última obra de caridade que se pode e deve prestar
a quem se foi, os velórios não deixam de ser um local de reencontro. Mas já não
se faz velórios como antigamente. A
modernidade vem se encarregando de alterar o protocolo ... Quando o velório tem
de atravessar a madrugada, já não é raro que a certa altura da noite a sala
seja chaveada e as pessoas retornem no dia seguinte. No interior da Bahia, como
certa feita me contou Seu Geir, admirável filho de Irajuba, o correr das horas
tinha como companheira uma boa pinga, o que mitigava o sofrimento e adormecia
uns e outros, de preferência os chatos.
Depois das
condolências aos familiares, do persignar-se e das orações junto ao falecido,
sobrevêm as tradicionais perguntas “como
foi?”, “sofreu no final?”, “tinha consciência?”. Cumprido o ritual básico,
é comum que as pessoas se afastem e passem a conversar com uns e outros. Sobre
tudo, do futebol à política, de trivialidades a anedotas. Afinal, é vida que
segue.
Pois foi num
velório que um conhecido me recomendou a leitura do livro cujo título denomina
este texto, do maranhense Dunshee de Abranches. Discípulo de Rio Branco, seguiu
o lema do patrono de nossa diplomacia: “A
pátria livre pela pátria soberana”. Acabara de ler “Nicolau e Alexandra”, de Robert Massie, obra excepcional que me foi
emprestada por dileto amigo. Massie descreve a trajetória dos Romanov até a
eliminação de Nicolau e sua família em Ekaterinburg e atribui à Alemanha a
responsabilidade maior pela eclosão da Primeira Guerra Mundial. O prussiano
Guilherme II, primo de Nicolau, seria, segundo Massie, o grande culpado pelo
trágico evento, cujo estopim foi o assassinato do arquiduque austríaco
Ferdinand em Sarajevo. O livro de Massie foi publicado em 1967.
Abranches
publicou “A illusão brazileira” em
1917 e sua versão quanto à responsabilidade pela primeira conflagração mundial
é bem diversa. Segundo ele a guerra foi única e exclusivamente comercial, instigada
pela Inglaterra, travada e mantida com a sempre poderosa arma da informação.
Uma das primeiras providências inglesas foi cortar os cabos telegráficos
alemães no Atlântico, isolando a Alemanha e seus aliados do Novo Mundo.
Tudo se fez, no
Brasil de então, para jogar a opinião pública contra o nosso maior cliente e
fornecedor, justamente a Alemanha. Nas ruas, cafés, restaurantes e mesmo no
parlamento os alemães e austríacos no Brasil passaram a ser hostilizados.
Abranches afirma que a expressão “militarismo
prussiano” não passou de um espantalho linguístico para tornar odioso o
imperialismo germânico, tão odioso quanto os imperialismos britânico, francês
ou russo. Ao socorrer a Bélgica, a título de evitar sua escravização pelos
alemães, a Inglaterra, que esgoelava a Irlanda com sua mão de ferro, tinha
pouca ou nenhuma autoridade.
Indignado com as
ações dos aliados, Abranches escreveu que cem anos depois de nossa libertação
civil éramos um país apenas geograficamente autônomo: “À nossa independência política não sucedeu ainda a nossa emancipação
econômica. Somos uma nação de fato tributária. Vivemos do estrangeiro, pelo
estrangeiro e para o estrangeiro”. Assinala que os ingleses invejavam o
desenvolvimento extraordinário e rápido da marinha mercante e da indústria
alemãs e que eles, os ingleses, não toleravam qualquer competição perigosa ao
seu comércio e ao seu predomínio marítimo.
Em março de 1915
o Times, órgão da política britânica, caprichou na franqueza: “Nós, ingleses, não estamos pelejando por
amor das pequenas nações, nem para suprimir o militarismo. Não estamos
combatendo, quer pela França, quer pela Rússia. Desembainhamos a espada por nós
mesmos, porque desejamos permanecer senhores do mar e do comércio do mundo”.
No decorrer do conflito o Brasil foi fortemente prejudicado pelas restrições
inglesas, impostas sem qualquer pudor, à exportação do café, nosso produto mais
importante à época.
A primeira guerra
devastou impérios, provocou a renúncia de Guilherme II, oportunizou a revolução
russa e o assassinato do czar. O que teria sido do mundo se Nicolau, torturado
pela hemofilia do filho, não houvesse mordido a isca preparada pelos ingleses? Teria
o comunismo sido implantado? Onde? São perguntas com respostas que não passam
de especulações, num mundo que parece destinado a sangrar por qualquer coisa.
Um mundo hemofílico.
J. B. Teixeira |
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