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quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

2019

A menos de três horas para a virada do ano fico a recordar eventos distantes e fatos recentes. Há mais de meio século estávamos na área de minha avó paterna. Eu era o caçula de então, aquele a quem os primos mais velhos têm quase a obrigação de engambelar. Descreviam que um velhinho se despedia e que podiam vê-lo no céu, ainda que de forma fugaz. Atendia pelo nome Ano Velho. Aguçava os olhos e a imaginação para tentar discernir no céu estrelado uma figura caduca, como estas que representam o ano velho nas charges.

Era um ritual de fim de ano da família de meu pai e seus quatro irmãos, com a mãe viúva, netos e agregados. Os momentos que precediam a meia-noite eram de um silêncio reverencial, rompido pelo sino da Igreja Matriz. Não estávamos preocupados com o horário de Brasília. Se o voluntário que badalava o sino se atrasasse, as pessoas duvidariam de seus relógios, com seus imprecisos ponteiros não digitais. Era assim, cada cidade com o seu tempo. Depois as telecomunicações fariam seus estragos, nos ocupando com informações no mais das vezes inúteis e, no fundo, desinteressantes. Como já escrevi algures, quando enfim a meia-noite era assumida, nos abraçávamos, mostrando o bem querer que segue atravessando as décadas.

Do remoto para o recente, desrespeitando as décadas, lembro da conversa com um cidadão que consertou um defeito no carro com o qual eu viajaria com a família. O surpreendi nos fundos de seu modesto estabelecimento. Torneira aberta, lavava um troféu num tanque em ruínas. Num ambiente meio bagunçado aquela recordação de seu passado futebolístico tinha lugar de destaque. Não, não foi nenhum craque de clube famoso, mas suas glórias, ainda que miúdas, têm dimensão capaz de lhe encher o peito por um passado que já se perdeu na poeira.

Do recente para o agora, já falta menos de mais hora para a virada. Estamos em meio a uma multidão atraída pela celebração na praia da Barrinha, em São Lourenço do Sul. Foi a maneira que encontramos de manter acordada nossa pequena de oito anos, mas foi uma daquelas indiadas que provavelmente não repetiremos. O conjunto musical quase atropelou a virada e o protocolo da noite teve de iniciar a contagem regressiva do 5 ... Foi por pouco! Pelo horário de Brasília ... Alguns acreditam que se encontram num pódio de competição automobilística: sacodem a garrafa de espumante e brindam os circunstantes com indesejado chuvisqueiro.

Quanto às músicas, não conhecíamos as novas. Para completar, os intérpretes antigos – como Jorge Ben e Tim Maia,- são cantados num ritmo frenético, sem poesia alguma. Ouvir “Gostava tanto de você” numa voz incompetente é um tremendo castigo. Desconhecer as músicas da época, entretanto, já me parece um atestado de exílio temporal. O que fazer se o tempo é como um cordão? Que se pode puxar e relembrar, mas não se pode empurrar para que retorne?

Seriam os primeiros sinais de rabugice? Sei lá, mas a própria queima de fogos me parece um desperdício que não deveríamos nos permitir. Não esperamos pela queima, programada para a primeira hora do novo ano. Aproveitamos a deixa e voltamos para casa, cruzando com dezenas que se dirigiam à festa com generosas provisões alcoólicas em caixas térmicas. Uma noite de exageros, mas ainda assim uma noite de alegria, recomeço e esperança.

Quando conciliava o sono lembrei-me daquele cidadão que lustrava seu troféu. Contou-me que alguns de seus parentes haviam partido no penúltimo dia do ano para o litoral norte. Pouco antes de começarem sua aventura descobriram que o tanque de combustível estava furado. Não se deram por vencidos. Removeram a quantidade necessária de gasolina para que o nível ficasse abaixo do furo ... e se foram. Subestimaram os riscos e decidiram reabastecer no caminho. É a ditadura das celebrações coletivas, na linha do “Todos estão lá! Como posso ficar de fora?”.

Por fim recordei a cena, de certa forma melancólica, em que aquele senhor me mostrou a placa onde fora gravado o motivo da premiação. Que de tão desgastada já não informa coisa alguma. Como os pés das estátuas de bronze de santos venerados, nos quais os fiéis passam a mão, como a benzer-se, na linha do “Estive aqui”. Dei-me conta então de que guardamos troféus, reais ou imaginários. Uns colocam na parede chifres de animais abatidos na África, enquanto outros expõem o modesto troféu conquistado num torneio municipal. Somos assim.

J. B. Teixeira



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