A menos de três
horas para a virada do ano fico a recordar eventos distantes e fatos recentes.
Há mais de meio século estávamos na área de minha avó paterna. Eu era o caçula
de então, aquele a quem os primos mais velhos têm quase a obrigação de engambelar.
Descreviam que um velhinho se despedia e que podiam vê-lo no céu, ainda que de
forma fugaz. Atendia pelo nome Ano Velho. Aguçava os olhos e a imaginação para
tentar discernir no céu estrelado uma figura caduca, como estas que representam
o ano velho nas charges.
Era um ritual de
fim de ano da família de meu pai e seus quatro irmãos, com a mãe viúva, netos e
agregados. Os momentos que precediam a meia-noite eram de um silêncio
reverencial, rompido pelo sino da Igreja Matriz. Não estávamos preocupados com
o horário de Brasília. Se o voluntário que badalava o sino se atrasasse, as
pessoas duvidariam de seus relógios, com seus imprecisos ponteiros não digitais.
Era assim, cada cidade com o seu tempo. Depois as telecomunicações fariam seus
estragos, nos ocupando com informações no mais das vezes inúteis e, no fundo,
desinteressantes. Como já escrevi algures, quando enfim a meia-noite era
assumida, nos abraçávamos, mostrando o bem querer que segue atravessando as
décadas.
Do remoto para o
recente, desrespeitando as décadas, lembro da conversa com um cidadão que
consertou um defeito no carro com o qual eu viajaria com a família. O
surpreendi nos fundos de seu modesto estabelecimento. Torneira aberta, lavava um
troféu num tanque em ruínas. Num ambiente meio bagunçado aquela recordação de
seu passado futebolístico tinha lugar de destaque. Não, não foi nenhum craque
de clube famoso, mas suas glórias, ainda que miúdas, têm dimensão capaz de lhe
encher o peito por um passado que já se perdeu na poeira.
Do recente para o
agora, já falta menos de mais hora para a virada. Estamos em meio a uma
multidão atraída pela celebração na praia da Barrinha, em São Lourenço do Sul.
Foi a maneira que encontramos de manter acordada nossa pequena de oito anos,
mas foi uma daquelas indiadas que provavelmente não repetiremos. O conjunto
musical quase atropelou a virada e o protocolo da noite teve de iniciar a
contagem regressiva do 5 ... Foi por pouco! Pelo horário de Brasília ... Alguns
acreditam que se encontram num pódio de competição automobilística: sacodem a
garrafa de espumante e brindam os circunstantes com indesejado chuvisqueiro.
Quanto às
músicas, não conhecíamos as novas. Para completar, os intérpretes antigos –
como Jorge Ben e Tim Maia,- são cantados num ritmo frenético, sem poesia
alguma. Ouvir “Gostava tanto de você”
numa voz incompetente é um tremendo castigo. Desconhecer as músicas da época,
entretanto, já me parece um atestado de exílio temporal. O que fazer se o tempo
é como um cordão? Que se pode puxar e relembrar, mas não se pode empurrar para que
retorne?
Seriam os
primeiros sinais de rabugice? Sei lá, mas a própria queima de fogos me parece
um desperdício que não deveríamos nos permitir. Não esperamos pela queima,
programada para a primeira hora do novo ano. Aproveitamos a deixa e voltamos
para casa, cruzando com dezenas que se dirigiam à festa com generosas provisões
alcoólicas em caixas térmicas. Uma noite de exageros, mas ainda assim uma noite
de alegria, recomeço e esperança.
Quando conciliava
o sono lembrei-me daquele cidadão que lustrava seu troféu. Contou-me que alguns
de seus parentes haviam partido no penúltimo dia do ano para o litoral norte.
Pouco antes de começarem sua aventura descobriram que o tanque de combustível
estava furado. Não se deram por vencidos. Removeram a quantidade necessária de
gasolina para que o nível ficasse abaixo do furo ... e se foram. Subestimaram
os riscos e decidiram reabastecer no caminho. É a ditadura das celebrações
coletivas, na linha do “Todos estão lá!
Como posso ficar de fora?”.
Por fim recordei
a cena, de certa forma melancólica, em que aquele senhor me mostrou a placa
onde fora gravado o motivo da premiação. Que de tão desgastada já não informa
coisa alguma. Como os pés das estátuas de bronze de santos venerados, nos quais
os fiéis passam a mão, como a benzer-se, na linha do “Estive aqui”. Dei-me conta então de que guardamos troféus, reais ou
imaginários. Uns colocam na parede chifres de animais abatidos na África,
enquanto outros expõem o modesto troféu conquistado num torneio municipal.
Somos assim.
J. B. Teixeira |
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