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quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Mais que insano

Estávamos na fila do raio-X no aeroporto de Frankfurt, passando pelos constrangimentos que se tornaram corriqueiros na aviação. Tira-se os sapatos, o cinto, deita-se numa caixa plástica chaves, moedas e demais objetos que contenham metal. Passam todos pelo portal detector. Se algo acusar uma presença suspeita um agente aproxima-se e inspeciona o candidato a terrorista com um detector manual. Quando enfim passam, agradecidos sem ter por que agradecer, com o cinto na cintura e os devidos sapatos nos pés, manifestam todos uma tola satisfação, agradecidos pela restituição do direito de ir e vir que nunca perderam. São subtrações de liberdade às quais todos se acostumaram.

A companhia aérea seria a Lufthansa, mais que renomada. Sua frota não é velha e conta com uma manutenção talvez sem igual por conta da reconhecida competência alemã, sobretudo na área da mecânica. Entre os objetos que depositei na caixa sobre a esteira do raio-X estava um crucifixo que me acompanha. O funcionário alemão, com certo desdém, perguntou por qual companhia voaríamos. Quando disse a ele que seria pela estatal alemã, olhou para o crucifixo e disse que então eu não precisaria dele.

Não gostei da brincadeira e após o exame da nossa bagagem de mão, enquanto recolocava o crucifixo no bolso da camisa, refleti sobre a soberba. Engenheiro que ama sua profissão, nunca acreditei que o comando das coisas está em nossas mãos. Lembro da infeliz resposta que o construtor do Titanic, Thomas Andrews, teria dado a uma repórter que indagou sobre a segurança da embarcação: “Minha filha, nem Deus afunda este navio”. Mesmo que nunca tenha pronunciado esta máxima de imprudência, é certo que os homens se comportam frequentemente desta forma, esquecidos de que a vida não lhes pertence.

Ainda hoje me espanto com algumas manifestações de fé inconsistente, como a que escutei dias atrás de um amigo de infância, ex-aluno, como eu, do Ginásio São João Batista, quando se referiu aos ensinamentos que lá tivemos. Pecado original? Uma bobagem! Como pode uma criança nascer com pecado? Que conversa mole! Uma mentira! Repetida apenas para controlar a humanidade! Faltou tempo para aprofundarmos o assunto e receio que a conversa não seria muito produtiva. Disse a ele tão somente que mantivera a crença e o convidei a refletir sobre a perfeição e encadeamento do mundo. Mas ficou para uma próxima oportunidade a convocação para que pense a respeito da vaidade que a todos acompanha, ainda que a uns mais e a outros menos. A vaidade, levada aos píncaros de sua estupidez, resulta na soberba de tentar igualar-se a Deus para decidir o bem e o mal. Eis a essência do pecado original. Quem está livre dele?

Numa época em que aumenta o número dos que se dizem agnósticos, ou mesmo ateus, me causa espécie quando vejo um ateu vaidoso. Ora, se Deus não existe e tudo é fruto do acaso, cada um de nossos passos é maquinal. E mesmo o que poderíamos chamar de vontade não passa de um espasmo, de um conjunto de contrações e de pura química cerebral. Como a vaidade só poderia brotar do que se faz com domínio, como alguém pode se envaidecer do que não passa de causalidade mecanicista? Como atribuir-se mérito se ninguém é bom, simpático, generoso, capaz, inteligente, virtuoso senão pela infernal cadeia mecânica de causas e efeitos?

Pensei um pouco nisto tudo quando fomos bombardeados pelas patéticas informações acerca do acidente que vitimou uma centena e meia de pessoas nos Alpes franceses. Tudo causado por um copiloto que trancou-se na cabine de comando e transformou a aeronave num míssil. Segundo uma ex-namorada, o maluco teria previsto que um dia seu nome seria famoso no mundo inteiro. Ou seja, por mais absurdo que pareça, ainda que com o cariz da loucura, o sujeito tinha a vaidade de se tornar famoso.

A essência do que se passou nos últimos minutos do voo é de domínio público e tudo foi lançado na conta da insanidade. Mas tornar os passageiros e demais tripulantes espectadores da tragédia foi mais que insano. Pode-se imaginar a gritaria geral e o desespero do piloto que a golpes de machado fracassou na tentativa de entrar naquela caixa-forte. O descenso de minutos para a morte, prefácio necrológico, foi muito mais que insano. Foi diabólico. Foi demoníaco.

J. B. Teixeira



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