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quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Deu o vento ...

... eis o pó levantado; estes são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído; estes são os mortos”. A reflexão, sublime, é do quiçá inigualável Padre Antônio Vieira, o lisboeta que veio ainda menino para o Brasil, consagrou-se à vida religiosa como jesuíta e encheu páginas da humanidade com poesia e sabedoria. Um dos prazeres que tivemos na encantadora Salvador foi visitar ambientes que Vieira pisou, como um mosteiro na parte alta da cidade. Nos dez anos de sua primeira estadia na Europa, como sacerdote, foi eleito pregador da corte de D.João IV, que o prestigiou e protegeu. Depois, Vieira voltaria ao Brasil, onde pregou com o vigor de sua coragem e o brilho de sua inteligência contra a escravidão de negros e índios. Granjeou, como é de se imaginar, feroz oposição do status quo da aristocracia agrária, sabidamente escravagista.

Tendo como razão primeira sua tese sobre o “Quinto Império Universal”, considerada herética e messiânica, Vieira também sofreria, a despeito de seu prestígio e fulgor, os rigores da Inquisição, sendo retido em Coimbra numa casa religiosa de repouso, quando aproximava-se dos sessenta anos. Sua defesa, segundo os estudiosos, foi eloquente, erudita, com rica dialética. Deu-se porém por vencido quando soube que o Papa Clemente X manifestara que sua doutrina continha confusão da fé. Foi proibido de escrever e pregar, mas não por muito tempo. Cerca de três anos depois de sua detenção seria perdoado das penas impostas e permaneceria alguns anos em Roma, emprestando aos púlpitos da cidade eterna o melhor de seu talento e vocação.

Retornando ao Brasil, onde viveria ainda cerca de quinze anos, empenhou-se na publicação de Sermões e manteve ativa redação de cartas, numa das quais revela a alegria de sua atividade missionária: “Ando vestido de um pano grosseiro cá da terra, mais pesado que forte; como farinha de pau, durmo pouco, trabalho de pela manhã à noite ...”. Teve o Brasil, portanto, a sorte de contar por longos anos com um dos grandes pregadores do segundo milênio da Igreja, cuja memória é insuficientemente cultuada. Seria porque se manteve fiel, a despeito de deslizes teológicos que possa ter cometido e de injustiças que possa ter sofrido? Creio que os que perseguem a Igreja e os jesuítas, em particular, teriam exultado se Vieira houvesse abjurado ...

Como disse Alice von Hildebrand, as críticas fáceis aos religiosos são sempre dirigidas aos que traíram princípios, que não passam de minoria. Assim como há péssimos pais, maus médicos, advogados canalhas e jornalistas vendilhões, há homens que não fizeram jus à veste sacerdotal. Que tal falarmos dos demais, os que deram bons exemplos? Que tal falarmos dos santos?

Comecei a engendrar este texto quando recebi pela rede social uma baboseira a respeito do que deve fazer um sexagenário, com recomendações que vão do mais reles egoísmo aos conselhos na linha hedonista. Me pareceu mais um manual prático para os que acumularam fortuna - que sabem não usufruirão até o último centavo,- e ainda não encontraram destino para a mesma, como se houvessem de sofrer no após morte a dor pela dissipação do tanto que amealharam, por vezes à custa de usura e nenhuma caridade. É claro que o “manual” não se dirige à grande maioria, que pena seus tostões poucos e sequer sabe se terá o que comer amanhã.

Recém sexagenário, com direito a furar fila em bancos, não pagar pelo transporte público e contar com lugares reservados de estacionamento – privilégios aliás miseráveis diante das dificuldades que o envelhecer trará,- não seria capaz de redigir um manual que faça contraponto, até porque os ensinamentos cristãos não precisam de paródia.

Se a morte virá como um ladrão, oculto e de noite, mais convém a cada um que procure ajustar suas contas, viver em harmonia, colocando-se mais a serviço dos necessitados, figurem eles entre os próximos ou façam parte da imensa legião dos que sequer conhecemos. É claro que desejo aos mais velhos um final digno e feliz, tanto quanto os achaques o permitam, mas desencorajo qualquer conselho à velhice que não esteja alicerçado na fé e no bem querer.

A propósito, Vieira concluiu a carta acima aludida informando que “ainda que com grandes imperfeições, nenhuma coisa faço que não seja com Deus, por Deus e para Deus, e para estar na bem-aventurança só me resta vê-Lo ...”. Os exemplos! Por que não cultuar os exemplos?

J. B. Teixeira



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