As
festas de final de ano geram uma atmosfera de alegria, exaltação e,
convenhamos, também de muitos exageros. Quando menino me parecia que o Natal
era melhor celebrado pela família de minha mãe. Era mais enfeitado, abastado e
alegre, ainda que as canções natalinas, de clara inspiração alemã, me
parecessem melancólicas. Tinha uma alegria triste, com o perdão da contradição.
Já a família de meu pai celebrava de forma mais bonita a passagem do Ano Novo.
Reuniam-se filhos e netos na rua Assis Brasil e o bôli, preparado pelas tias,
embalava a casa humilde de minha avó. As crianças também podiam tomar bôli e,
se bem lembro, os adultos não controlavam ... Comíamos as frutas mergulhadas no
espumante, cujo teor alcoólico nos colocava em outro patamar, digamos. É assim
que se vai conhecendo as tradições da família e cumprindo rituais de passagem
da idade do sei-lá para o tempo do sei-mas-até-nem-gostaria-de-ter-sabido.
Tenho
por certo, portanto, que o bôli foi minha iniciação no terreno dos
espirituoses, como lição de que o que por vezes inebria também tem o dom de
anestesiar. Bebo desde pequeno, mas afortunadamente não tenho fígado para me
tornar alcoólatra, o que jamais deixou de ser uma barreira muito conveniente. Da
adolescência à maturidade – eufemismo de cabelos ralos e brancos,- sorvi muita
água que passarinho não bebe. Dos destilados aos fermentados, não vivi em vão.
Naveguei por águas muitas para então aportar no cais dos vinhos.
Dias
atrás, mais para entreter uma conversação do que para de fato compreender
alguma coisa, um colega me perguntou qual o melhor vinho que já tomara. Demorei
para começar a responder. Vasculhei a memória atrás de algum rótulo e nada
colhi senão a percepção de que sou infiel a marcas ou procedências. Como já
manifestei algures, tomávamos vinho de garrafão na casa paterna. Os comentários
de meu pai e convivas aludiam ao gosto da uva
ou à acidez do vinho. Tomava-se vinho de mesa, como denominação genérica
e imprecisa. Hoje toma-se vinho desta ou daquela uva, ainda que as garrafas
contenham blends, com predomínio da uva que estampa o rótulo. Quanto entendo da
arte da enologia? Nada. Se na música mal posso distinguir o som de um bumbo das
notas de um violino, no terreno dos vinhos mal arrisco diferenciar um branco de
um tinto ... Não posso, portanto, entregar-me à vaidade de descrever o sagrado
líquido do profano Baco como sendo rubiáceo, amadeirado ou encorpado e
obviamente não posso distinguir sabores de frutas vermelhas e outros atributos de
vinhos mais elaborados.
Posso
apreciar um vinho jovem espanhol, deplorar um cabernet chileno ou enaltecer um
merlot que um amigo de muitos anos produziu artesanalmente com outros quatro
parceiros. Compraram pouco mais de mil quilos de uva, com teor medido de
açúcar, pacientemente a isentaram de impurezas e seguiram o processo produtivo.
Ao fim, deixaram o vinho em barricas de carvalho, atingindo um teor alcoólico
pouco frequente. Qual o rótulo utilizado nas oitocentas garrafas produzidas? 5
Amici. Não podia ser diferente. Tomei a garrafa que me foi presenteada e posso
afirmar que deixaram para trás muito vinho disponível nas melhores prateleiras
do ramo.
Enquanto
pensava nisto tudo, tartamudeava, sem de fato responder. Qual o melhor vinho
que tomara? Sem qualquer atributo de um sommelier, respondi de outra forma.
Contei que no período em que moramos na Alemanha, minha esposa e eu íamos, aos
sábados, à Missa das 18 horas na Igreja de Sankt Eberhard, em Stuttgart. Foi um
período de crise econômica na pátria de Goethe, em virtude da qual as coisas
eram muito mais baratas que agora. Comprava-se fondue suíço e vinho francês por
bem menos da metade do preço habitual. Depois da Missa íamos a uma livraria,
onde arrematávamos títulos hoje talvez inacessíveis. Por fim retornávamos à
nossa habitação em Brackenheim, um bem apetrechado porão de uma residência de
classe média, e jantávamos. Filhos adultos, não tínhamos ainda nossa caçula e
naqueles meses, vivendo um para o outro, tomamos alguns dos melhores vinhos de
nossas vidas. Vinhos baratos.
Concluindo a resposta, relatei que acalentara longamente o sonho
de passar uma véspera de Natal em oração, num mosteiro, sem presentes, exageros
ou ostentação de qualquer sorte. Minha esposa gostou da ideia, a adaptou e num
ano qualquer do passado assistimos a Missa do Galo na Basílica de São Pedro.
Finda a celebração, retornamos ao hotel e jantamos, no quarto, alta madrugada,
apenas pão e vinho. Os melhores vinhos são tomados com quem nos ama ou aprecia,
em momentos de incomum alegria. Os melhores vinhos não têm rótulo.
J. B. Teixeira |
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