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quinta-feira, 5 de julho de 2018

Rótulos

As festas de final de ano geram uma atmosfera de alegria, exaltação e, convenhamos, também de muitos exageros. Quando menino me parecia que o Natal era melhor celebrado pela família de minha mãe. Era mais enfeitado, abastado e alegre, ainda que as canções natalinas, de clara inspiração alemã, me parecessem melancólicas. Tinha uma alegria triste, com o perdão da contradição. Já a família de meu pai celebrava de forma mais bonita a passagem do Ano Novo. Reuniam-se filhos e netos na rua Assis Brasil e o bôli, preparado pelas tias, embalava a casa humilde de minha avó. As crianças também podiam tomar bôli e, se bem lembro, os adultos não controlavam ... Comíamos as frutas mergulhadas no espumante, cujo teor alcoólico nos colocava em outro patamar, digamos. É assim que se vai conhecendo as tradições da família e cumprindo rituais de passagem da idade do sei-lá para o tempo do sei-mas-até-nem-gostaria-de-ter-sabido.

Tenho por certo, portanto, que o bôli foi minha iniciação no terreno dos espirituoses, como lição de que o que por vezes inebria também tem o dom de anestesiar. Bebo desde pequeno, mas afortunadamente não tenho fígado para me tornar alcoólatra, o que jamais deixou de ser uma barreira muito conveniente. Da adolescência à maturidade – eufemismo de cabelos ralos e brancos,- sorvi muita água que passarinho não bebe. Dos destilados aos fermentados, não vivi em vão. Naveguei por águas muitas para então aportar no cais dos vinhos.

Dias atrás, mais para entreter uma conversação do que para de fato compreender alguma coisa, um colega me perguntou qual o melhor vinho que já tomara. Demorei para começar a responder. Vasculhei a memória atrás de algum rótulo e nada colhi senão a percepção de que sou infiel a marcas ou procedências. Como já manifestei algures, tomávamos vinho de garrafão na casa paterna. Os comentários de meu pai e convivas aludiam ao gosto da uva  ou à acidez do vinho. Tomava-se vinho de mesa, como denominação genérica e imprecisa. Hoje toma-se vinho desta ou daquela uva, ainda que as garrafas contenham blends, com predomínio da uva que estampa o rótulo. Quanto entendo da arte da enologia? Nada. Se na música mal posso distinguir o som de um bumbo das notas de um violino, no terreno dos vinhos mal arrisco diferenciar um branco de um tinto ... Não posso, portanto, entregar-me à vaidade de descrever o sagrado líquido do profano Baco como sendo rubiáceo, amadeirado ou encorpado e obviamente não posso distinguir sabores de frutas vermelhas e outros atributos de vinhos mais elaborados.

Posso apreciar um vinho jovem espanhol, deplorar um cabernet chileno ou enaltecer um merlot que um amigo de muitos anos produziu artesanalmente com outros quatro parceiros. Compraram pouco mais de mil quilos de uva, com teor medido de açúcar, pacientemente a isentaram de impurezas e seguiram o processo produtivo. Ao fim, deixaram o vinho em barricas de carvalho, atingindo um teor alcoólico pouco frequente. Qual o rótulo utilizado nas oitocentas garrafas produzidas? 5 Amici. Não podia ser diferente. Tomei a garrafa que me foi presenteada e posso afirmar que deixaram para trás muito vinho disponível nas melhores prateleiras do ramo.

Enquanto pensava nisto tudo, tartamudeava, sem de fato responder. Qual o melhor vinho que tomara? Sem qualquer atributo de um sommelier, respondi de outra forma. Contei que no período em que moramos na Alemanha, minha esposa e eu íamos, aos sábados, à Missa das 18 horas na Igreja de Sankt Eberhard, em Stuttgart. Foi um período de crise econômica na pátria de Goethe, em virtude da qual as coisas eram muito mais baratas que agora. Comprava-se fondue suíço e vinho francês por bem menos da metade do preço habitual. Depois da Missa íamos a uma livraria, onde arrematávamos títulos hoje talvez inacessíveis. Por fim retornávamos à nossa habitação em Brackenheim, um bem apetrechado porão de uma residência de classe média, e jantávamos. Filhos adultos, não tínhamos ainda nossa caçula e naqueles meses, vivendo um para o outro, tomamos alguns dos melhores vinhos de nossas vidas. Vinhos baratos.

Concluindo a resposta, relatei que acalentara longamente o sonho de passar uma véspera de Natal em oração, num mosteiro, sem presentes, exageros ou ostentação de qualquer sorte. Minha esposa gostou da ideia, a adaptou e num ano qualquer do passado assistimos a Missa do Galo na Basílica de São Pedro. Finda a celebração, retornamos ao hotel e jantamos, no quarto, alta madrugada, apenas pão e vinho. Os melhores vinhos são tomados com quem nos ama ou aprecia, em momentos de incomum alegria. Os melhores vinhos não têm rótulo.

J. B. Teixeira



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