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quarta-feira, 25 de julho de 2018

Crise

Tenho uma imagem gravada a fogo na memória. Tinha lá meus oito a nove anos e brincava no alto da escada da casa de meus avós maternos. Montara um guindaste manual com as peças de um brinquedo, chamado Mecbrás, que tem a idade destas lembranças. Era constituído por um conjunto de peças - como rodas, roldanas, pequenas placas, parafusos, porcas e outros componentes mecânicos,- e permitia montar várias coisas. Algumas das montagens possíveis e mais elegantes eram sugeridas na caixa do brinquedo. Outras, ainda que menos belas, brotavam da imaginação de cada um. O cabo do guindaste que montei era um barbante delgado, esticado por um pequenino contrapeso de ferro fundido.

Depois de liberar o cabo até o chão, prendia alguma coisa para que pudesse içá-la. Tornava a subir a escada e então trazia até mim o que supostamente resgatava de um vale profundo. Passados tantos anos, sou eu que me encontro no vale, o vale da maturidade, cercado pela serrania do próprio tempo, lutando de quando em vez para escalar cimos e enxergar mais longe.

Era uma tarde qualquer na vida de um menino que estudava pela manhã no Ginásio São João Batista e depois de feitas as lições de casa tinha seus momentos de folguedo. Lembro-me sem a sombra de qualquer dúvida que naquela tarde tive a convicção de que desejava ser engenheiro. Quis o tempo e a sorte que alcançasse a meta, sobretudo porque até então papagueava que desejava ser Embaixador. Vejam só, ainda que então não fizesse ideia concreta do papel de um representante diplomático, enfiara na cabeça que viajaria pelo mundo. Para sorte da diplomacia brasileira, deixei o sonho pelo caminho, como faz um pássaro pequeno que não conseguiria voar com o peso do galho que se metera a transportar. Não se alivia o peso de um avião apenas para impedir que caia, portanto, mas também para que possa decolar.

Vivíamos naquele tempo as grandes aventuras espaciais, o que deixava nossa cabeça um pouco além das nuvens. Quando Gagarin, em órbita, deslumbrou-se com a Terra azul, eu tinha quatro anos. Quando Neil Armstrong pôs seu pé na Lua, tinha doze. E todos nós, os meninos de então, já éramos lunáticos havia um bom tempo. Não havia como não sonhar mais alto e era comum  escutar alguma criança-austronauta fazendo de conta que chamava a Terra pelo rádio.

Apesar de já andarmos no lombo do veloz cavalo da tecnologia de então, um puro sangue, como hoje se vê pelos avanços galopantes nas últimas décadas, ainda restava na alma algo maior. Nossa formação humanística e nossas práticas fraternas, estimuladas pelas escolas confessionais, preservavam o perfume de humanidade em nosso meio, em nossas famílias. Era um tempo em que os jovens sonhavam em fazer algo pela comunidade, pelo mundo. Universitários se engajavam no Projeto Rondon, por exemplo, e muitos deles sonhavam, ainda que secretamente, em por os pés na miséria da África para ajudar os outros de alguma forma.

Qual era a grande diferença da década de 60 para os dias que correm? Foi de um sábio Padre que escutei a resposta, quando lembrou que os homens precisam de ideais. Nos anos 60 o idealismo respirava e os jovens cumpriam seu papel natural de inconformismo. Protestavam contra hipocrisias estabelecidas, contra a ditadura, contra o holocausto no Vietnã, ainda que muitos deles tenham trocado os pés pelas mãos ao mergulharem no oceano das drogas.

Meio século atrás quase todos tinham preocupações humanitárias de superior grandeza e os ególatras estavam longe de serem maioria. Também era, é verdade, uma época turbilhonada por ideologias, cujas consequências e fracassos encheram páginas e páginas da História. A despeito disto, ainda se enxergavam dignos mesmo os homens que não tivessem um tostão no bolso.

Alguém já disse, com boa dose de ceticismo, que a natureza é bruta e que só os homens insistem em vê-la de forma mais generosa. O que dizer? Resta perguntar como anda, agora, o idealismo. Basta olharmos em nossa volta. Quantos idealistas você enxerga no seu entorno? Quantos jovens você conhece que se dispõem a ultrapassar as fronteiras de si mesmos para dar às suas existências um valor mais alto? Se você pervaga a memória, volta a insistir nesta busca por idealistas e sua desapontada resposta é o silêncio, isto por si só já dá o tom de nossa realidade empobrecida, a cabresto de interesses pequeninos. Como o enriquecer de qualquer forma. Ou o exibir-se a todo custo.

J. B. Teixeira



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