A
decisão dos governos de Malta e de Itália de recusar a entrada do navio Aquarius nos portos desses países, contrariando
o que vinha sendo prática habitual em casos semelhantes, causou indignação em
muitas pessoas. O navio, da O.N.G Sos
Mediterranée, tinha salvo do naufrágio centenas de refugiados e migrantes,
alguns deles menores desacompanhados, muitos com necessidades de assistência
imediata. Veio a ser recebido em Valência, por decisão do governo espanhol. A
Igreja espanhola manifestou a sua total disponibilidade para colaborar no
acolhimento dessas pessoas. Disse, a propósito o cardeal arcebispo de Madrid,
D. Carlos Osoro, que o Aquarius é «um
apelo de Cristo à Europa». Ou seja, um teste à coerência da Europa com as suas
raízes cristãs e com o propósito político de respeito pelos direitos humanos. E
o cardeal Ravasi evocou, também a propósito desta questão, as palavras de Jesus
no Evangelho: «Era forasteiro e recebeste-Me».
Mas
também houve quem justificasse, e até aplaudisse, a decisão do governo
italiano. Houve quem dissesse que a moral do “bom samaritano” serve para as
pessoas, não para os Estados. Houve quem alegasse que essa era a forma de
combater os crimes de tráfico de pessoas e de auxílio à imigração ilegal
(crimes que comportam sempre a exploração da vulnerabilidade de refugiados e
migrantes): enquanto continuarem a ser acolhidas as pessoas que atravessam o
Mediterrâneo em tão precárias condições, continuarão os incentivos a essa
travessia; se deixarem de o ser, acabarão esses incentivos. À frase do
Evangelho evocada pelo cardeal Ravasi, haveria que contrapor esta outra: «Era
traficante e criminoso e limitaste a minha ação».
É
verdade que devem ser encontradas alternativas a estas travessias do
Mediterrâneo (que fazem deste um cemitério) e à sujeição de refugiado e
migrantes a redes de tráfico e auxílio à imigração ilegal. Esse é o objetivo do
projeto de criação dos chamados “corredores humanitários”, para a deslocação de
refugiados e migrantes de forma legal e segura, projeto por que se têm batido a
Comunidade de Santo Egídio e outros organismos. E é também esse o objetivo dos dois
Pactos Globais das Nações Unidas sobre Refugiados e para as Migrações Seguras,
Ordenadas e Regulares, que estão atualmente em negociação.
Mas
a moral do “bom samaritano”, da solidariedade e do respeito pela dignidade da
pessoa humana, vale para as pessoas e para os Estados. São princípios
evangélicos e também constantes das Cartas de Direitos Humanos e das
Constituições. Não é aceitável o dualismo que (com base na filosofia de
Maquiavel, ou numa distorcida visão da “razão de Estado”) isenta os Estados
dessa moral, até porque muitas das decisões com maior relevância neste âmbito
ultrapassam as capacidades das pessoas e da sociedade civil.
Por
isso, diante de pessoas em risco de vida, há que tudo fazer para as salvar: uma
pessoa que pode prestar assistência médica a outra ou que pode impedir que ela
se afogue, um Estado que abre os seus portos a um grupo de náufragos. É a
proteção da vida humana que o exige. Pode até estar em causa a prática de um
homicídio por omissão. Este é um princípio que está acima de qualquer lei que
regule a imigração.
Para
as pessoas, como para os Estados, vale a regra de que os fins não justificam os
meios e de que certos atos (como a morte intencional de pessoas inocentes)
nunca podem ser justificados por quaisquer fins. O combate aos crimes de
tráfico de pessoas e de auxílio à imigração ilegal não pode fazer-se sem olhar
a meios, com o sacrifício da vida de quem desses crimes é a principal vítima. É
verdade que a ação das redes ligadas à prática desses crimes seria
desincentivada com a morte das pessoas que recorrem a essas redes. Mas os fins
não justificam os meios: esta é uma verdade elementar que parece esquecida nos
tempos que correm.
Pedro Vaz Patto
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