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quinta-feira, 5 de julho de 2018

Aquarius

A decisão dos governos de Malta e de Itália de recusar a entrada do navio Aquarius nos portos desses países, contrariando o que vinha sendo prática habitual em casos semelhantes, causou indignação em muitas pessoas. O navio, da O.N.G Sos Mediterranée, tinha salvo do naufrágio centenas de refugiados e migrantes, alguns deles menores desacompanhados, muitos com necessidades de assistência imediata. Veio a ser recebido em Valência, por decisão do governo espanhol. A Igreja espanhola manifestou a sua total disponibilidade para colaborar no acolhimento dessas pessoas. Disse, a propósito o cardeal arcebispo de Madrid, D. Carlos Osoro, que o Aquarius é «um apelo de Cristo à Europa». Ou seja, um teste à coerência da Europa com as suas raízes cristãs e com o propósito político de respeito pelos direitos humanos. E o cardeal Ravasi evocou, também a propósito desta questão, as palavras de Jesus no Evangelho: «Era forasteiro e recebeste-Me».

Mas também houve quem justificasse, e até aplaudisse, a decisão do governo italiano. Houve quem dissesse que a moral do “bom samaritano” serve para as pessoas, não para os Estados. Houve quem alegasse que essa era a forma de combater os crimes de tráfico de pessoas e de auxílio à imigração ilegal (crimes que comportam sempre a exploração da vulnerabilidade de refugiados e migrantes): enquanto continuarem a ser acolhidas as pessoas que atravessam o Mediterrâneo em tão precárias condições, continuarão os incentivos a essa travessia; se deixarem de o ser, acabarão esses incentivos. À frase do Evangelho evocada pelo cardeal Ravasi, haveria que contrapor esta outra: «Era traficante e criminoso e limitaste a minha ação».

É verdade que devem ser encontradas alternativas a estas travessias do Mediterrâneo (que fazem deste um cemitério) e à sujeição de refugiado e migrantes a redes de tráfico e auxílio à imigração ilegal. Esse é o objetivo do projeto de criação dos chamados “corredores humanitários”, para a deslocação de refugiados e migrantes de forma legal e segura, projeto por que se têm batido a Comunidade de Santo Egídio e outros organismos. E é também esse o objetivo dos dois Pactos Globais das Nações Unidas sobre Refugiados e para as Migrações Seguras, Ordenadas e Regulares, que estão atualmente em negociação.

Mas a moral do “bom samaritano”, da solidariedade e do respeito pela dignidade da pessoa humana, vale para as pessoas e para os Estados. São princípios evangélicos e também constantes das Cartas de Direitos Humanos e das Constituições. Não é aceitável o dualismo que (com base na filosofia de Maquiavel, ou numa distorcida visão da “razão de Estado”) isenta os Estados dessa moral, até porque muitas das decisões com maior relevância neste âmbito ultrapassam as capacidades das pessoas e da sociedade civil.

Por isso, diante de pessoas em risco de vida, há que tudo fazer para as salvar: uma pessoa que pode prestar assistência médica a outra ou que pode impedir que ela se afogue, um Estado que abre os seus portos a um grupo de náufragos. É a proteção da vida humana que o exige. Pode até estar em causa a prática de um homicídio por omissão. Este é um princípio que está acima de qualquer lei que regule a imigração.

Para as pessoas, como para os Estados, vale a regra de que os fins não justificam os meios e de que certos atos (como a morte intencional de pessoas inocentes) nunca podem ser justificados por quaisquer fins. O combate aos crimes de tráfico de pessoas e de auxílio à imigração ilegal não pode fazer-se sem olhar a meios, com o sacrifício da vida de quem desses crimes é a principal vítima. É verdade que a ação das redes ligadas à prática desses crimes seria desincentivada com a morte das pessoas que recorrem a essas redes. Mas os fins não justificam os meios: esta é uma verdade elementar que parece esquecida nos tempos que correm.

Pedro Vaz Patto



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