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domingo, 10 de junho de 2018

Semeadura

Cultivo em estufa mudas de flamboyant a partir de sementes que cato por aí. Quando encontro uma árvore adulta com bela floração trato de arrumar uma vara para abater algumas vagens. Aprendi como despertar as sementes e o resultado tem sido razoável. Destinei várias mudas a uma área rural. Planejei plantá-las no entorno de um morro, sonhando com o colar avermelhado que, à distância, haveria de divisar ao cabo de alguns anos.

O plantio com um ajudante não foi fácil por conta do solo pedregoso, mas a altura em que foram dispostas é área livre de geadas e portanto nos pareceu que a empreitada poderia ter sucesso. Ao final da tarefa estávamos moídos de cansaço, mas como já disse alguém, a combinação de sacrifício e fé é poderosa e o cansaço era o de somenos. Alguns meses depois voltei à área e descobri que pouco menos da metade vingara. Tudo indicava que a razão fora a passagem de gado, com sua habitual indiferença por veleidades paisagísticas. O inverno, contudo, passara e o sonho estava encaminhado. Ou, melhor dizendo, quase a metade dele. Pouco importava, afinal se um único flamboyant já é um deleite para os olhos e um conforto para o espírito, o que dirá umas duas dezenas desta espécie originária da ilha de Madagascar.

Assim como gosto de semear, gosto de ler. Dias atrás um amigo me sugeriu a leitura de Homo Deus, do mesmo autor de Sapiens. Não li o segundo e apenas passei os olhos no primeiro, mas me interessei em saber do que tratam. A sugestão de leitura foi seguida por um rasgado elogio à origem do autor. É de Harvard!, me disse. O que acontecerá nos próximos anos é o mote central do livro. O que deveria pensar? Que o Olimpo se manifestou pela pena de Yuval Noah Harari?

Selecionei alguns trechos: “Geração após geração os humanos rezaram para todos os anjos, deuses e santos e inventaram um sem-número de ferramentas, instituições e sistemas sociais — mas seguem morrendo aos milhões de inanição, epidemias e violência. Muitos pensadores e profetas concluíram que a fome, a peste e a guerra deviam fazer parte do plano cósmico de Deus ou de nossa natureza imperfeita, e nada a não ser o fim dos tempos nos livraria delas. (...)  O sucesso alimenta a ambição, e nossas conquistas recentes estão impelindo o gênero humano a estabelecer objetivos ainda mais ousados. Depois de assegurar níveis sem precedentes de prosperidade, saúde e harmonia, e considerando tanto nossa história pregressa como nossos valores atuais, as próximas metas da humanidade serão provavelmente a imortalidade, a felicidade e a divindade. Reduzimos a mortalidade por inanição, a doença e a violência; objetivaremos agora superar a velhice e mesmo a morte. Salvamos pessoas da miséria abjeta; temos agora de fazê-las positivamente felizes. Tendo elevado a humanidade acima do nível bestial da luta pela sobrevivência, nosso propósito será fazer dos humanos deuses e transformar o Homo sapiens em Homo deus”. A despeito dos avanços da medicina, acendeu a luz vermelha!

Certa feita contestei com reflexões cristãs um colunista de um periódico paulistano. Sua resposta acabou com a polêmica: informou que sua perspectiva era a de um ateu como, me parece, é o caso de Yuval Harari. A busca da verdade não é privilégio dos teístas, mas é sempre saudável conhecer a perspectiva de quem escreve. Não para discriminá-lo, mas para melhor entender suas ideias. Em “O homem revoltado” Camus discorre exatamente sobre a vontade de ser deus que decorre da suposta indiferença, morte ou mesmo maldade de Deus. Cá entre nós, isto não lembra Adão e Eva no Éden? Pelo jeito a metáfora da expulsão do Paraíso longe está de ser uma tolice e a recorrência do tema apenas demonstra sua centralidade na existência humana.

Santo Tomás reconheceu que não é possível demonstrar a existência de Deus, mas tampouco os ateus podem demonstrar que Ele não existe. Para o perigo do encantamento com  novidades, Von Hildebrand escreveu que “As categorias de verdade e falsidade foram substituídas pela preocupação de algo ser atual ou pertencer ao passado, ser corrente ou ultrapassado, ser “vivo” ou “morto”. Saber se uma coisa é “viva” e “dinâmica” parece mais importante que saber se é verdadeira e boa. Essa substituição é um sintoma óbvio de decadência intelectual e moral”.

Decorridos aproximadamente dois anos, retornei ao morro. Não encontrei um flamboyant sequer. Os imaginara já robustos e jamais suporia sua extinção, triste para quem manuseara as sementes. Mais uma frustração para o rosário da existência, mais uma lição para uma iniciativa amadora. Não é fácil plantar em solo pedregoso. Não é sábio plantar no caminho dos bois.
  
J. B. Teixeira



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