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terça-feira, 5 de junho de 2018

A brecha aberta pela eutanásia

Já tinha lido a respeito do percurso de Theo Boer, o professor de bioética que, depois de ter colaborado nas comissões de controlo de execução da lei holandesa que permite a eutanásia, é hoje um dos principais críticos dessa lei. Ouvi-lo há tempos na Universidade Católica ajudou-me a compreender melhor as razões da sua atitude e as consequências que acarreta qualquer legalização da eutanásia. São consequências que decorrem de uma mudança cultural profunda que introduz uma brecha num edifício e o vai corroendo progressivamente. Isso pode não ser evidente de imediato, mas sê-lo-á mais tarde, como já o é na Holanda, poucas mais de uma década depois.

Theo Boer, sabendo bem que não é essa a posição do magistério da Igreja Católica e da grande maioria do seu auditório, começou por declarar aceitar a eutanásia como último recurso e dizer que acreditou inicialmente na possibilidade de a lei holandesa ser aplicada nessa linha (não podemos, por isso, dizer que a sua tese é distorcida por algum a priori doutrinal). Tal não se verifica, porém. Embora inicialmente parecesse que os números da prática da eutanásia estivessem contidos, eles começaram a disparar e são hoje cerca do triplo do que eram há dez anos, sendo o número real (obtido através de inquéritos anónimos) bastante superior aos oficialmente registados. As causas da eutanásia também se vêm estendendo progressivamente, das situações de doença terminal às de doença incurável e deficiência, das de dor física às de sofrimento psíquico e doença psiquiátrica. O passo seguinte é o da proposta em discussão (defendida pelo anterior governo e que o atual suspendeu à espera de novos estudos) que estende a eutanásia a situações de “vida completa” (onde podem caber a solidão e falta de sentido da vida, o sofrimento existencial), fora do âmbito de qualquer doença, pois. Discute-se a idade (setenta ou setenta e cinco anos) a partir da qual será legal a eutanásia com esse fundamento e se será aceitável, à luz do princípio da igualdade, essa discriminação em função da idade. A “rampa deslizante” torna-se, assim, não um receio ou um fantasma, mas uma evidência.

O estudo das causas deste fenómeno de “rampa deslizante” pode ser encarado em diferentes perspetivas. Theo Boer salientou uma delas, que também me parece de salientar. A legalização da eutanásia abre uma brecha num edifício cultural. A morte provocada deixa de ser um tabu (uma saudável tabu, como há outros saudáveis tabus), algo que não se discute sequer, e passar a ser normalizada. O clima cultural e social altera-se. Esse clima passa a encarar (como nunca tinha sucedido até aí) a morte provocada como solução para qualquer situação de maior sofrimento. A oferta que representa a legalização incentiva a procura. E esta cresce, como revelam os números. Porque essa legalização não consagra apenas uma situação já existente (uma procura prévia) no plano cultural, mas abre a porta a novas situações, abre uma brecha que conduz à normalização da morte provocada, antes de mais no plano cultural.

Por vezes, argumenta-se em favor da lei holandesa que esta é eficaz no controlo de abusos porque grande parte dos pedidos de eutanásia são rejeitados. Mas isso só revela como a oferta que ela representa incrementa a procura. E como esses pedidos refletem o clima cultural que normaliza a morte provocada.

Outro reflexo dessa alteração de clima cultural pode ser detetado – salientou também Theo Boer - no incremento da prática do suicídio em geral.

Com frequência, alega-se em favor da legalização da eutanásia, que esta evitaria muitos suicídios praticados de forma isolada, violenta e traumática. A experiência holandesa revela que não é assim (como o revela também a experiência dos Estados norte-americanos que legalizaram o suicídio assistido, onde o número da prática de suicídios em geral é superior à de outros onde o suicídio assistido não é legal). Desde a legalização da eutanásia na Holanda, o número de suicídios cresceu 37%, quando na Alemanha (país próximo e equiparável socialmente) desceu 10%. Vários fatores poderão explicar esta situação. O principal decorre, precisamente, da alteração do clima cultural que é consequência da legalização da eutanásia: a morte provocada deixa de ser um (saudável) tabu e passa a ser normalizada como resposta ao sofrimento, em qualquer idade, em qualquer tipo de doença, com doença ou sem ela. E é muito difícil, para o Estado e para os serviços de saúde, prevenir e combater um fenómeno (o suicídio em geral) que é, em determinadas condições, facilitado (como suicídio legal e medicamente assistido).

Disse Theo Boer que na Holanda, no início dos anos noventa do século passado, quando a eutanásia começou a ser praticada legalmente em casos pontuais, ninguém pensava que daí resultaria a situação que hoje está à vista de todos: um sistema organizado de morte provocada (nalgumas regiões, esta atinge cerca de 14% do número total de mortes). A brecha que se abriu vem contribuindo para corroer o edifício cultural que assentava no alicerce da proibição de matar. E continuará a fazê-lo de forma incessante.

É em tudo isto, nas consequências mais profundas, de mais longo prazo e de maior alcance, que deve pensar quem tem a responsabilidade de legislar sobre a eutanásia. Uma lei com um alcance cultural como poucas têm.

Pedro Vaz Patto
Presidente da
Comissão Nacional Justiça e Paz



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