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domingo, 15 de abril de 2018

Não se revoga o tempo

Já estava saudoso de garimpar bons livros no sebo que frequento em Porto Alegre, lugar de doce abandono para quem aprecia prateleiras de obras abandonadas ... O tempo naquela manhã de sábado foi curto, mas encontrei “Um diplomata da república”, obra que revela parte da correspondência de Assis Brasil nas embaixadas em que atuou. Sujeito multifacetado, desde cedo respeitado por seus dotes intelectuais e qualidades de cidadão, foi casado com a irmã de Júlio de Castilhos, mais tarde seu inimigo figadal. Exímio atirador, era capaz de proezas como disparar com as duas mãos ou valer-se de um espelho para atirar de costas.

Almoçamos no Bonfim, bairro cuja atmosfera me é muito agradável. Vamos sempre no mesmo restaurante, de boa mesa e preço honesto, cuja tripulação já nos conhece. O ambiente daquela casa de repasto exalava um clima que lembrava os botecos onde curtimos risadas universitárias. A luz pouco intensa e as paredes revestidas por madeira até meia altura lembram um pouco as pequenas cervejarias alemãs. Tiveram o dom das evocações, recordando a juventude que se foi, mas insiste em viver na lembrança. A poucos metros dali residiram tios e primos, com os quais muito convivi. Inumeráveis vezes me refiz em sua mesa do precário cardápio de caserna nos sete anos de Colégio Militar, que vivi plenamente na condição de interno. 

Por falar em cervejarias alemãs, quando desempenhava suas funções diplomáticas em Washington, no ano da graça de 1900, Assis Brasil revelou para o nosso ministro de relações exteriores suas impressões sobre os riscos de então contra a integridade nacional. Relatou que durante sua permanência na legação de Buenos Aires um estadista chileno, de alto coturno, lhe contara que o chefe do estado-maior de seu país, um alemão, fora bem antes sondado por Bismarck para cumprir funções de agente secreto no sul do Brasil. Segundo ele, Bismarck imaginara que o esfacelamento do Império subdividiria o Brasil, criando a oportunidade de apoderar-se do sul. Coisa meio fantasiosa, mas não impossível numa época em que o colonialismo explícito não desaparecera e países da Europa ainda tinham a África esquartejada a seu talante. Fantasia ou não, durante a segunda guerra mundial os descendentes de alemães foram alvo de perseguição em nossa região, como potenciais conspiradores.

Lembrar do tempo universitário é recordar que augurávamos por um país de oportunidades, na juventude risonha e franca, quando sonhamos com um papel menos secundário no concerto internacional. Depois as coisas foram dando errado, os dias conspiraram contra os anelos de minha geração e agora temos a sensação de que a montanha pariu um rato. Invadidos que fomos sem um tiro sequer, pela via econômica, o suposto plano de Bismarck é hoje irrelevante para nossas histórias individuais, cujas páginas têm, mesmo no mais pacato cidadão, as grandes interrogações da existência. Que na juventude desprezamos, para reencontrá-las na maturidade.

Ainda que tarde, fazendo pouco caso de sonhos, a realidade fala sempre mais alto, curando a cegueira de quem não quer ver. Como escreveu Ortega y Gasset, a vida é um verdadeiro caos onde estamos perdidos: “O homem suspeita disso; mas tem pavor de se encontrar cara a cara com essa realidade terrível, e procura ocultá-la com uma cortina fantasmagórica, onde tudo está muito claro. Não se importa que suas ‘ideias’ não sejam verdadeiras; usa-as como trincheiras para se defender da sua vida, como rompantes para afugentar a realidade”.

Segundo o pensador espanhol, quando nos encontramos à deriva nos dias de incertezas e olhamos a vida de frente, assumimos por fim tudo que é problemático e nos sentimos perdidos. Como viver é sempre sentir-se perdido, a aceitação disto já nos faz pisar em terra firme. Gasset, em alegoria muito feliz, nos compara aos náufragos, porque buscamos algo a que possamos nos agarrar para então organizarmos o caos nosso de cada dia. Segundo Gasset, estas seriam as únicas ideias verdadeiras, as dos náufragos.

Naquele sábado, de coisas e imagens simples, no oceano do tempo que a todos faz náufragos, respirei ares da juventude. Navegar pode ser bom, mesmo agarrado a troncos, e o tempo é rio sem margens. Não foi um sábado qualquer. Aquela gente parecia capaz de rir e pensar com humor sobre o que há de mais sério, uma qualidade rarefeita. Tinha o ar despreocupado, cortês, mas o jeitão de quem se lixa para as convenções. Como é bom sentir-se em casa longe dela. 

J. B. Teixeira











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