Páginas

segunda-feira, 30 de abril de 2018

Lembranças

O temporal vespertino não fora dos mais violentos, mas foi o suficiente para derrubar o fornecimento da energia elétrica. Por conta disto o cair de tarde foi lançando sombras no interior da casa, até que ficasse impossível de divisar qualquer coisa naquela noite de lua nova. Antes que o breu tomasse conta de tudo, Maria separou vela e fósforo, como no tempo de sua infância. Lembrou-se da casa paterna, de pau a pique, barreada, da mãe caprichosa e servil e do pai sempre bruto, quando não embriagado e violento.

Como era melancólico aquele tempo, pensou. Sem energia elétrica, o fim da jornada era já sonolento. As horas com pouca luz se arrastavam e dormir cedo era inevitável. Lembrou-se também das demais dificuldades da vida na área rural. Por mais que cuidasse, por mais asseio que mantivessem, as coisas empoeiravam e tudo tinha cheiro de pasto e de bicho. Quando conheceu seu futuro marido, José, impossível esquecer, ela vestia uma roupa clara, com o pó vermelho dos caminhos. Primeiro flertou com aquele rapaz diferente dos outros, semanas depois a aproximação, meses depois o namoro, anos depois o casamento com extensa prole.

Maria deixou-se ficar na poltrona de espaldar alto, em que passa a maior parte de seu tempo, a queimar seus olhos fazendo crochê ou acarinhando os gatos que buscam seu colo ou sentam num dos apoios de braço. Fechou os olhos e aquela sala escura, com paredes de madeira e piso de velhas tábuas, marcadas pelos passos de duas gerações, voltou a ganhar vida. Lembrou de Conceição, a sogra com a qual não manteve relação muito afável, mas da qual cuidou até o fim. 

Os filhos voltaram à memória, com sua algaravia à mesa. Provedora e atenta, Maria lembrou-se das preocupações, tantas, sobretudo das doenças, como o crupe e o tifo, e das alegrias de uma família que lutou e avançou. Lembrou-se dos netos, que a visitavam com frequência e deram, brejeiros, mais trabalho que os filhos.

Na longa espera, com tudo quieto à sua volta, cochilou. Acordou com as badaladas do relógio, antigo como a casa. Nove da noite! E a luz ainda não voltara. Não esperaria mais. Melhor dormir. Na escuridão, só contrariada pela frágil luz da vela, caminhou com redobrado cuidado. Passou pelo antigo escritório de José, onde este encontrava refúgio para suas leituras e escritos eivados de humor. Textos concisos, com a paciência e sabedoria que os anos lhe cumularam.

Diante da escrivaninha, também um dia usada pelos filhos nos trabalhos escolares, deixou-se ficar por alguns instantes. Lembrou da parcimônia da pena e do tinteiro, substituídos bem mais tarde pela tagarela máquina de escrever. Naquela mesa seu marido viveu também momentos de grande apreensão, fechando as contas do mês e vencendo dificuldades inevitáveis de uma família numerosa, com alguns incidentes terríveis, como a falência de um amigo do qual José era fiador. Maria voltou no tempo e viu uma vez mais seu José com os ombros curvados pelo peso da encrenca criada pela traição daquele que fora, até então, amigo e confidente.

Girou sobre si mesma e estancou diante do armarinho que albergava as infusões com cachaça. Aguardente com sassafrás, como depurativo do sangue e antitérmico, ou com imburana. Ou mesmo pura, para combater as cruéis dores de dente. Ainda bem fornida, aquela modesta caixa de primeiros socorros na parede, que tantos serviços prestara à sua família, não tinha, porém, o bálsamo de que precisava naquela noite de escuridão e lembranças. Dirigiu-se pelo corredor ao seu quarto. Quem a visse teria a imagem fantasmagórica de uma velha, com as pernas um tanto arqueadas, a escorregar sobre suas chinelas, a caminhar num túnel de sombras. Um halo a envolvia, mal disfarçando o cabelo mal penteado, que desfeito lhe bateria na cintura, denunciando um comprimento exagerado para seus oitenta anos.

Fez o sinal da cruz ao passar pelo crucifixo, alongado pela luz da vela. Persignar-se diante daquele símbolo do Gólgota foi um pedágio que pagou por décadas, sempre exaltando mentalmente o Cristo e pedindo proteção para os seus. Foi atendida. Não viveu aos sobressaltos, nem seus próximos viveram tragédias.

Prosseguiu com passos ainda mais cuidadosos quando um vento quase apagou a vela e entrou em seu quarto. Alcova de décadas, onde a família aumentou, até bater na casa dos seis. Quarto onde perdeu José quando seu coração inventou de parar. Tirou o xale, que a preocupava pelo risco de incêndio, e depositou a vela diante de um dos oratórios que ocupam a cômoda. Continuou rezando, tentando concentrar-se, agora com o olhar passeando sobre as imagens, algumas das quais com mais de cem anos. Lembrou de sua mãe, ajoelhada diante delas, a rogar aos céus por dias de ventura.

A vizinhança toda decerto dormia. Nem os cachorros quebravam o silêncio profundo, que contrastava melancolicamente com os ruídos que reviveu naqueles momentos de escuridão, de lembranças que agora subsistem em porta retratos. Seguiu rezando, mas não sentiu a calma que a oração normalmente lhe trazia.

Pensamentos confusos a dominaram nesta noite em que alguns sentidos afloraram e outros adormeceram. Rezou pelos antepassados. Rezou pelos filhos e netos. Rezou por José. E temeu a morte, naquela noite feita de completo breu, tanto quanto a desejou. Fez sobre si o sinal da cruz, sentou-se na cama, enxugou o rosto com a manga da camisola e apagou a vela.

J. B. Teixeira



Sem comentários:

Enviar um comentário