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quinta-feira, 5 de abril de 2018

Desumanização

Olá, meu nome é Fernando. Com quem estou falando? Não entendi bem e silenciei o suficiente para perceber que se tratava de uma ligação com identificação de vocábulos, uma pérola da “inteligência artificial”. Acho indigna a ideia de responder para uma máquina, uma versão ainda pior das ligações no estilo “se você quer isto, disque um, se deseja aquilo, disque dois, ...”. É apenas mais um desaforo tecnológico, dentre os tantos que tentam nos converter em inumanos.

Há não muito acompanhei uma discussão entre amigos paulistas. Dois deles são tidos na conta de esquerdistas, uns cinco podem ser creditados à direita e os demais não são coisa alguma. O cantochão da esquerda clama pelo cetro dos que se preocupam com os pobres e acusam os demais de serem apenas reles exploradores. Os da direita indagam onde a esquerda foi bem sucedida e enumeram, rapidamente, as atrocidades perpetradas pelos messiânicos comunistas. Esta conversa acaba sempre aborrecida porque os da esquerda fazem de seu credo uma religião enquanto os demais os tratam, a despeito da civilidade do debate, como idiotas que ainda descobrirão o erro em que se encontram. E assim prosseguimos, desunidos, com a sensação de nadar em gelatina, aturando discursos ideológicos que longe estão do bem comum.

Por mais de uma vez pensei em intervir na discussão com a citação de alguns dos ensinamentos do Magistério da Igreja, como aqueles expressos na Populorum Progressio. Paulo VI indicou o malogro dos sistemas: “Infelizmente, sobre estas novas condições da sociedade, construiu-se um sistema que considerava o lucro como motor essencial do progresso económico, a concorrência como lei suprema da economia, a propriedade privada dos bens de produção como direito absoluto, sem limite nem obrigações sociais correspondentes. Este liberalismo sem freio conduziu à ditadura denunciada com razão por Pio XI, como geradora do "imperialismo internacional do dinheiro” ". Por outro lado a encíclica não nega a contribuição da industrialização e da organização do trabalho e sentencia que desenvolvimento era o novo nome da paz.

Como, porém, aspergir a sabedoria da doutrina social da Igreja em grupos descristianizados, que se apresentam até mesmo como inimigos dela? Muitos se regozijam afirmando que a Igreja está em crise. Não, não é a Igreja, mas a humanidade. Como escreveu Paulo VI, “O mundo está doente. O seu mal reside menos na dilapidação dos recursos ou no seu açambarcamento, por parte de poucos, do que na falta de fraternidade entre os homens e entre os povos”. Como esquecer a pobreza de países periféricos e a concentração da riqueza na mão de poucos?

É cada vez mais frequente a pregação de minimizar o Estado, por dissipador, corrupto e quase inútil, como se as políticas públicas não fossem fundamentais. Este caminho renega a evolução da vida nômade ou isolada para a vida comunitária, destrói nacionalidades e atira boa parte da humanidade aos leões. No meu grupo de amigos cresce o número dos que defendem a extinção da previdência, delegando aos bancos e seguradoras a proteção das pessoas. Isto não é apenas um tiro no escuro. Seria um tiro na têmpora da rede de proteção de todos os que não são ricos.

A mobilidade das populações, premidas pela pobreza ou por conflitos, tem embaralhado o perfil demográfico do mundo. A Europa, com baixas taxas de natalidade, islamiza-se. Sem xenofobia, nem desamor, pergunto se tal fato não seria de preocupar os governantes, a quem cabe proteger suas culturas? Manietados por legislações e organismos internacionais, os governos atuais são subjugados pela hidra do grande capital, que especula, drena economias e pouco se importa com a destruição de culturas. Ironia das ironias, países pobres imploram, genuflexos,  pela boa vontade de investidores. É algo similar a pedir transfusão de sangue a vampiros.

Paulo VI convocou pensadores e sábios a buscar o absoluto, a justiça e a verdade, lembrando aos homens que o verdadeiro desenvolvimento “não consiste na riqueza egoísta e amada por si mesma, mas na economia ao serviço do homem, no pão cotidiano distribuído a todos como fonte de fraternidade e sinal da Providência. Combater a miséria e lutar contra a injustiça, é promover não só o bem estar mas também o progresso humano e espiritual de todos e, portanto, o bem comum da humanidade”.  Avesso a isto, o mundo de autômatos crescentes não tem as respostas para os grandes problemas. Porque virou as costas para a indagação bíblica: “De que serve ao homem ganhar o mundo inteiro, se vem a perder a sua alma?” (Marcos 8:36). 

J. B. Teixeira



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