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quinta-feira, 15 de março de 2018

Espinhos

Não sento praça entre aqueles que beijam cachorro, mas neto de dona Maria do Carmo, mãe de meu pai, não posso maltratar bicho algum. Lembro dela já andando com dificuldade, sob o peso de seus mais de oitenta anos, atrás de um qualquer de seus tantos gatos que sumira. Pobre dos meus bichinhos, era o que dizia. Pshi .. Pshi .. Pshi... fazia ela, com a persistência de uma filha de Antônio Inácio de Oliveira Calais, homem nascido e criado em Triunfo, que os bisnetos suspeitam tenha sido um singelo discípulo de Flores da Cunha. Pelo menos no tocante a dinheiro, para explicar seu fim modesto depois de ter sido proprietário de grandes extensões de terra: cavalos lerdos e mulheres ligeiras ...

Com esta carga atávica de uma Dona Palmira familiar, certa manhã abri a porta de casa com apreensão. Teria uma de nossas cachorras melhorado? Andava amuada, com dificuldade no andar. Eis que abro a porta e a vejo igual, mas nosso preferido, Max, parece estranho. Cabeça baixa, como quem fareja furiosamente, ou tenta livrar seu focinho de um azorrague, me faz temer por sua saúde. Me aproximo e ergo sua cabeça para logo diagnosticar o problema. Crivado de espinhos nas gengivas, que tento arrancar à mão, reluta em relaxar. A tarefa não é fácil e compreendo sua reação: ao serem removidos, os espinhos de ouriço, por conta de suas fisgas, completam o estrago. O pobre animal, portanto, hesita em acreditar no acerto da solução.

Afasta-se e busca a bacia de água, que contudo não consegue tomar. Torna a baixar a cabeça e escarafuncha o focinho com uma das patas dianteiras. Busco um alicate e exerço minha autoridade para escancarar sua dentição, iniciando a extração de espinhos no céu da boca. Só então, depois do segundo ou terceiro sucesso, entrega-se aos cuidados para enfim se ver livre daquela aflição. Com as gengivas sangrando vai com muita sede ao pote, o que me faz imaginar que o incidente com o ouriço, bicho de pouquíssimos amigos, acontecera muitas horas antes.

Já enfrentara situação similar, mas muito pior na extensão, quando outra de nossas cachorras se atracara, literalmente, num ouriço, quase partindo seu rabo a dentadas. Não levou a termo sua fúria porque se enchera de espinhos no rostro, que de tão crivado parecia barbado. Tive que anestesiá-la para remover dezenas e dezenas de espinhos. É impressionante a capacidade de autodefesa de um animal pequenino, cujo único recurso é ferir tão eficazmente seus inimigos.

Enquanto me desincumbia da missão de livrar Max de seu padecimento, pensava nas ideias perniciosas de nossa cultura ocidental como verdadeiros e venenosos espinhos. Confesso que a livre associação foi contaminada pela leitura de “O homem revoltado”, na qual estava mergulhado por aqueles dias. Radiografando de forma lúcida e inclemente a revolução francesa, Camus arrumou confusão, cativando sobre si duros ataques de ressentidos, como Sartre.

Camus poupou, até certo ponto, a figura de Saint-Just, a quem atribui alguma ingenuidade. Sabemos que havia bem mais que a deposição de um rei em jogo. A revolução pretendia estabelecer a república das leis, sob a religião da razão. A bestialidade deflagrada no período do Terror é mancha que não se apaga. Quando, por fim, no golpe do Termidor, caiu o Comitê de Salvação Pública, Robespierre e Saint-Just, o líder e o ideólogo, foram guilhotinados em 24 horas. Como dizem uns, a ideologia é uma religião bastarda. Outros, como Joseph de Maistre, foram além: a decantada revolução francesa, que se pretendeu a religião da virtude, foi satânica.

Para indignação de muitos intelectuais, Camus registrou que era “um escândalo repugnante ter apresentado como um grande momento de nossa história o assassinato público de um homem fraco e bom”. Também assinalou que “A maior parte das revoluções toma a sua forma e originalidade num assassinato. Todas, ou quase todas, foram homicidas. Mas algumas, além disso, praticaram o regicídio e o deicídio”. Foi mesmo uma pena Camus ter morrido tão cedo.

As revoluções francesa e russa parecem muito diferentes. A francesa  beneficiou o capitalismo,  a russa tentou eliminá-lo. Há, porém, uma importante semelhança entre elas: o deicídio. Mesmo que, atualmente, se debite mais à revolução russa a tentativa de extirpar Deus do mundo. Decorrido tanto tempo, os erros e radicalismos de ambas permanecem como espinhos no céu da boca de parte da humanidade que, incapaz de removê-los, se agita, se desgasta e até se mata.

J. B. Teixeira



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