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sábado, 30 de dezembro de 2017

Sem sentido

Morávamos numa casa alugada. O terreno era excepcional e a prova disto é que hoje abriga um conjunto de apartamentos. Tinha algumas árvores e um galinheiro e foi em suas goiabeiras que aprendi a subir em galhos e a colher frutos. Talvez por isto mesmo as admire tanto hoje, ainda que agora as aprecie apenas do solo. Tenho certa saudade de escalar seus frágeis galhos e me encanto quando vejo uma goiaba esculpida por bicos de pássaro. Simples, trata-se de um espetáculo digno de “Olhai as flores do campo; elas não fiam, nem tecem. Eu, todavia, vos asseguro que nem mesmo Salomão, em todo o seu esplendor, pôde se vestir como uma delas”.

Pois foi naquele tempo que, certo dia, um gato malhado da vizinhança inventou de morrer em nosso pátio, numa faixa estreita de grama. Não lembro de detalhes, mas hoje sei que agonizava em silêncio. Nariz colado na janela, numa tarde fria e garoenta, tinha sobre mim os olhos furtivos de minha mãe. Por certo percebeu que aquela era a minha primeira experiência efetiva com a morte. Um olho no olho atemporal, que nos arranca da ignorância metafísica e nos coloca as grandes questões da existência, aquelas que estão acima dos carnês e dos planos de viagem.

Como não demonstrei maior espanto em meus  prováveis cinco a seis anos, minha mãe inventou de dizer que eu seria médico ... Sei lá por quanto tempo ela acalentou esta fantasia, mas o certo é que acabei cuidando de números e maltratando letras. Não me tornei nem médico das gentes, nem de bichos e nem de almas, como Lucas. Pelo menos não dei maiores dores de cabeça a ela, que um dia se foi numa nuvem de desgosto e cansaço. Dela herdei, além de defeitos e virtudes, um breviário que mantinha em seu criado mudo. Não rezingava orações pela casa, mas guardava sua fé, com uma discrição que me fará perguntar vida afora o quanto isto a susteve.

Cuidar dos filhos e oferecer os sacrifícios decorrentes disto a Deus já foi a pedra angular que dava sentido à vida. As coisas mudaram e aquelas mesas cheias de filhos e de alaridos constituem cenas em preto e branco. Antecipavam o paraíso, por maiores que fossem os problemas e dificuldades da hora. Mas cuidar de filhos já não pode ser tudo na vida. Como não o pode ser, também, apenas construir, edificar, empanturrar-se, acumular ou fruir sucessos. Também é pouco. E se não o fosse pelo sentido, o seria pela precariedade temporal. Em poucas décadas a vida mudou bastante e os pais passaram a se preocupar demais com o futuro material dos filhos. Antes bastava o amanhã. Hoje parece que os pais não podem descansar em paz. Que não se preocupem tanto com o que não poderão levar. Os herdeiros, ciosos de tudo, encarregam-se de despojar aqueles que se vão até das bijuterias ...

Dias atrás, no galinheiro que mantemos, uma das aves dava sinais de que sua trajetória chegava ao fim. Aparentemente perdera peso e pegá-la confirmou minhas suspeitas. Disse à minha filha pequena que a galinha provavelmente morreria ao cabo de horas. Ela talvez lembre disto no futuro, com moderada intensidade. Já perdeu uma cachorra, perto da qual, convenhamos, o que é uma galinha? Ainda assim, são pequenas advertências de que a eternidade não é terrestre.

Com tantos chamados metafísicos à nossa volta, é cada vez mais comum encontrar quem se confesse ateu. Um deles me disse, certa feita, acreditar que não passamos de animais, como um cachorro. Não sei se esta pessoa tem algum destes fiéis amigos do homem, mas seria melhor que não o tivesse. Porque se de fato pensa como afirma pensar, não poderá retribuir sequer a um cachorro a amizade que este lhe devota.

Ando às voltas com leituras paralelas, tentando diminuir as muitas lacunas de minha formação. É tarefa cada vez mais íngreme, afinal, como me dizia um bom baiano, é difícil ensinar papagaio velho a falar... Um dos últimos livros que li apresenta a revolução francesa como matriz moderna da religião sem Deus. Como se sabe, na longa corrida de revezamento contra a espiritualidade, o bastão chegou às mãos da revolução russa. E hoje? Hoje o bastão tem réplicas mundo afora.

Não consigo imaginar como seriam os dias se respirasse desencanto com a eternidade, se meus pensamentos fossem todos dessacralizados ou vivesse no teatro do absurdo que é a vida sem um norte espiritual, como um ateu. Sem o intuito de menosprezá-los numa metáfora mecanicista, seriam os ateus bússolas cujas agulhas se recusam a respeitar o campo magnético da Terra?

J. B. Teixeira



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