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segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Os enjeitados da modernidade

Sempre me soa pouco verossímil quando alguém afirma que não se arrepende de nada. Se até os santos pecam, seria um traço de psicopatia? Seja porque fiz muitas escolhas erradas, das quais não recuei a tempo, seja porque pequei e peco muito mais que tais pessoas, confesso que não as entendo. Tenho incontáveis arrependimentos, dos pequeninos aos montanhosos.

Se há algo que reluto em perdoar foi não ter escutado muito mais meus avós e tios, fonte complementar e insubstituível das tantas histórias que escutei de meus pais. Cheguei a gravar entrevistas com duas tias. Que já se foram, mas tornam à vida com um toque de tecla, como num passe de mágica. Um dos registos foi realizado num sítio. Respostas espontâneas, com ruídos da natureza ao longe, numa cozinha com fogão a lenha. Foram momentos sublimes de autenticidade, marca daquela época. Não sabiam dissimular, muito menos esgrimir cinismos.

Pelo lado paterno, toda a geração que nos antecedeu já reside no Céu, tendo legado exemplos a serem imitados. Além das coisas imateriais, vidas longevas acumulam papéis, de cartas a livros, documentos, como diplomas e escrituras. Também deixam bens, mesmo os mais humildes. Cristo, sabidamente pobre, foi despojado de suas vestes, disputadas ao pé da Cruz. Como reza o Salmo 22:18, “Eles dividiram minhas roupas entre si, e para a minha túnica lançaram sortes”.

Herdeiros disputam espólios, seja por razões materiais, seja por motivação mais nobre. Tenho observado em anos de visitação a sebos de livros que estes, em geral, não são objeto de disputa. Quantas obras encontrei com dedicatórias, bilhetes e assinaturas ilustres, bem como algumas obras autografadas. O que terá acontecido com a descendência para que certas preciosidades se perdessem em prateleiras mofadas?

Conquista do século XIX, a fotografia era artigo de luxo nos primórdios do século passado. Quem já empreendeu buscas genealógicas que envolvam aquela época sabe que fotos deste tempo são raridade e felizes os que possuem recordações desta espécie. Ainda assim, fotos são bens pouco disputados. Fotos de gente velha, então, são quase desprezadas, por mais constrangedor que seja rejeitar preciosidades. Seriam tais negligências socialmente eugênicas? Seria pouco atraente preservar testemunhos de que eventualmente descendemos de gente feia e humilde? Difícil asseverar, mas bem que isto ajudaria a explicar porque há tantas fotos albergadas em acervos públicos ou privados. Escaparam do holocausto das latas de lixo.

Há uma curiosidade nos sebos paulistanos. Os livros cuja lombada pareça nobre, a despeito de seu conteúdo, elevado ou fútil, são mais valorizados. Não por amor à literatura, mas porque parecem chiques. São adquiridos frequentemente por decoradores, cujo faro e talento emprestam a certos ambientes um ar de elevação. A presença de tais obras revela um gosto estético, mas raramente denota interesse pelas letras. Quem forma uma biblioteca tem sempre alguma expectativa quanto ao interesse de seus descendentes. Um dos maiores bibliófilos brasileiros, José Mindlin, doou grande parte de seu acervo à Universidade de São Paulo, mas reservou parte para seus filhos, por certo imaginando que zelarão como ele o faria.

Quando os modestos pertences de minha avó paterna foram compartilhados por filhos e netos, cada um teve a oportunidade de reivindicar alguma coisa. Tudo se deu de forma fraterna. Mas, decorridos os anos, compreendi que muitos objetos de valor foram perdidos para sempre por falta de consciência histórica. Não me refiro a joias, que a boa Maria do Carmo sequer tinha, mas cadernos e boletins escolares, livros antigos e fotos, para citar alguns exemplos.

Meu irmão ficou com um oratório antiquíssimo, tisnado pelos humores de velas centenárias, que possivelmente a vó de nossa vó acendeu. Fez a escolha por objetos que simbolizavam o que há de mais puro diante das incertezas da vida: a fé. Recentemente fui aquinhoado com as imagens dos Corações de Jesus e de Maria, que um dia encorajaram as dificuldades de meus pais. Se livros não atraem os jovens de hoje e fotos velhas, de gente real, muito menos, o que dizer de símbolos religiosos? Não querem nem de graça. Porque neste novo jeito de ver e sentir, que se chama modernidade - que o tempo haverá de devorar,- a religião e a fé são coisas do passado.

J. B. Teixeira







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