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terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Não matarás…

Um discurso recente do Papa Francisco representa um decisivo passo em frente no sentido da condenação da pena de morte em qualquer circunstância e por uma questão de princípio. Afirmou o Papa num seu discurso de 11 de setembro passado: «Deve afirmar-se energicamente que a condenação à pena de morte é uma medida desumana que, independentemente do modo como for realizada, humilha a dignidade pessoal. Em si mesma, é contrária ao Evangelho, porque voluntariamente se decide suprimir uma vida humana que é sempre sagrada aos olhos do Criador e cujo verdadeiro juiz e garante, em última análise, é apenas Deus. Nunca homem algum, nem sequer o homicida, perde a sua dignidade pessoal, porque Deus é um Pai que sempre espera o regresso do filho, o qual, sabendo que errou, pede perdão e começa uma vida nova. Por conseguinte, a ninguém se pode tirar não só a vida, mas até a própria possibilidade de um resgate moral e existencial que redunda em proveito para a comunidade.»

Já São João Paulo II, na encíclica Evangelium vitae tinha dado um passo nesse sentido, afirmando que a pena de morte só poderia encontrar justificação num princípio de legítima defesa social (não numa ideia de proporcionalidade com a gravidade do crime cometido) e que serão hoje praticamente inexistentes as situações em que ela se possa justificar por não existiram alternativas de defesa da sociedade perante a perigosidade de um delinquente.

Seria de esperar este passo seguinte dada pelo Papa Francisco, que nega a legitimidade da pena de morte por uma questão de princípio. Na verdade, a tentativa de basear a legitimidade da pena de morte na legítima defesa social encontra dois obstáculos. Por um lado, quando se executa a pena de morte, não se verifica, como se verifica nas situações de legítima defesa, uma agressão atual e iminente (não é legítima a defesa preventiva). Por outro lado, quando se provoca a morte de um agressor ilegítimo, esta não é diretamente querida (o que diretamente se pretende é a defesa própria ou alheia), mas um efeito indireto não intencional. E isso não se verifica quando se executa a pena de morte.

Esta evolução da doutrina da Igreja tem dado aso, nos Estados Unidos, a uma polémica em que uma das fações põe em causa a legitimidade do que alega ser uma rutura com a doutrina tradicional, que admitia a legitimidade da pena de morte, rutura de onde resultaria o descrédito de toda a autoridade moral da doutrina da Igreja. A outra fração responde salientando que a aceitação da pena de morte (também rejeitada por alguns Padres da Igreja) não pode considerar-se doutrina definitiva.

A propósito de uma outra questão, onde também se deu uma evolução da doutrina católica, a questão da liberdade religiosa, o Papa emérito Bento XVI, afirmou, no seu célebre discurso à Cúria Romana de 2005, que uma aparente descontinuidade revela uma continuidade num plano mais profundo. O reconhecimento do valor da liberdade religiosa no Concílio Vaticano II não é uma cedência às influências da cultura contemporânea, nem uma verdadeira rutura com a doutrina tradicional, antes um seu aprofundamento num sentido de uma maior fidelidade à mensagem original do Evangelho, ao anúncio de um Deus que não se impõe coercivamente, porque é Amor. Dizia também São João XXIII que o Evangelho não muda, nós é que o conhecemos melhor.

De modo paralelo, também a recusa da pena de morte por princípio representa uma fidelidade maior à mensagem bíblica e evangélica. Deus não quer a morte do pecador, mas que ele se converta e viva (Ez 18,23). A dignidade da pessoa não se perde com a indignidade dos pecados ou crimes que possa cometer, por muitos graves que estes sejam (vejam-se os episódios da mulher adúltera e do filho pródigo). A justiça não se confunde com a vingança (com o “olho por olho, dente por dente”) e deve ser completada pela misericórdia. A pena de morte fecha as portas a qualquer conversão, reconciliação e misericórdia. De forma contraditória, pretende combater crimes contra a vida através de um ataque à vida, com o que isso representa de antipedagógico numa perspetiva de afirmação de uma cultura da vida.

Com a rejeição mais clara da pena de morte, a Igreja não se descredibiliza; pelo contrário, reforça a sua autoridade moral para condenar, com coerência, todas as violações da vida humana, em todas as suas fases, da conceção até à morte natural, de inocentes e culpados, de justos e pecadores.

Pedro Vaz Patto




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