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terça-feira, 19 de setembro de 2017

Veritas

Chego do supermercado e preparo algo para jantar. A filha pequena já deve estar dormindo, no Vale do Caí, e a idade da filha do meio, quase com trinta anos, me lembra que já tenho décadas. Mora em São Paulo e no domingo tornarei a vê-la, depois de muito tempo. Êta vida! Falarei com a esposa dentro de alguns minutos e direi a ela que segui sua receita no preparo de uma espécie de kafta. Contarei que chegar em São Paulo foi penoso e que quase dormi no trecho final, para lá de desgastante, na Serra do Cafezal. A obra de duplicação já dura décadas e ninguém fala abertamente quando terminará. Entre outras dificuldades, questões ambientais representam parte do drama. É Mata Atlântica para cá, biodiversidade para lá, e um silêncio constrangedor sobre o prejuízo dos adiamentos. Ninguém abre a boca sobre o desperdício de combustível e sua poluição. Para tomar um exemplo, percorri míseros quinze quilómetros em mais de duas horas. Quantas vidas se foram em acidentes naquele trecho cercado de mato? Não, não sou inimigo da natureza. Planto mais de duzentas árvores por ano, mas isto não me cega. Religião, só aquela que vem de Deus e não a que se assemelha ao credo panteísta.

No mercado, escolhendo com frugalidade e calma o que preciso nos dias que permanecerei em São Paulo, coloco na cesta uma embalagem de aveia. Ao empunhar a caixa dou-me conta de que no verso há inscrições em braile. As percorro com dedos que mais não podem além de pegar coisas ou afagar. Tenho dedos cegos, que num rasgo de lucidez passam a admirar os dedos de quem não vê  e ainda assim lê. Que capacidade extraordinária, que brilho de quem criou tal linguagem. Entre gôndolas fico a imaginar que jamais seria capaz de tal proeza, a de ler um mapa de pontos em relevo. Quão extraordinário é ou pode ser o homem.

Me vem então à lembrança uma celebração na Igreja de Sankt Eberhard, em Stuttgart, quando uma moça, discreta, sem sair de seu lugar em meio aos fiéis, encheu o templo com uma voz absolutamente celestial. Daquela noite em diante me recusei a sequer pensar que uma pessoa pode cantar como um pássaro. Não é verdade. Pessoas com aquele dom cantam muito, mas muito melhor que qualquer pássaro. Quantos talentos existem entre nós.

Nas asas da imaginação, me vejo novamente diante do “The University Club”, em Nova Iorque. O clube é compartilhado por grandes universidades daquele país, cujos brasões em pedra, com inscrições em latim, são destaque na parede frontal. Dei sub numine vigit é a de Princeton, instituição criada no século XVIII, rebatizada com o nome atual em 1896 e na qual Einstein abrigou-se em seu autoexílio. A frase quer dizer “Prospera (ou floresce) sob a influência de Deus”. Já o brasão de Harvard, inegavelmente uma das mais prestigiosas instituições acadêmicas do mundo, tem na inscrição a palavra Veritas no centro e pontifica “A Verdade para Cristo e para a Igreja”. Princeton e Harvard são dois exemplos de que a fé produz belos frutos.

Enquanto bebericava minha cachaça com butiá assisti um programa sobre felicidade, baseado numa longeva pesquisa, conduzida justamente em Harvard desde a década de trinta. Fazer o que bem entender, sucesso e dinheiro fazem parte do elenco dos ingredientes de felicidade, mas são empanados, segundo a pesquisa, pelo brilho da vida entre amigos e as relações familiares estáveis. Deus não foi citado no programa, o que não chega a surpreender. A omissão condiz com as visões seculares que hoje predominam, com a ruinosa autossuficiência dos homens em seu ateísmo militante ou com a empedernida indiferença dos que se dizem agnósticos.

Com muitas tarefas pela frente, aproveito a folga noturna para apascentar o coração e colocar ideias e papéis em ordem. Cá no meu canto, longe da merecida imponência de Harvard e do Campus de Princeton, não tenho dúvida de que a coluna mestra da vida é sentir o amor que Deus tem por nós, pobres pecadores que oscilamos entre delírios de grandeza e a mais triste desesperança. Sei que, tangidos pela vara do relativismo cego,  muitos fazem esgar ao escutar a palavra verdade, de cuja existência duvidam. Por que caíram no vazio da descrença? Vários afirmam que são filhos da razão e que a existência da dor e do mal foi determinante. São ressentidos, portanto, contra o que identificam como o abandono do homem à própria sorte. Um bom recomeço seria perceber que a verdade é a essência tanto da ciência quanto da religião. Assim, quem sabe um dia, valendo-se da razão, mas tomados de humildade, perceberão que Deus nos sustenta a cada passo. Não creio que haja ateus ou agnósticos sem remissão.

J. B. Teixeira 



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