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quinta-feira, 15 de junho de 2017

Azarados

Abro a caixa de mensagens e me deparo com algo insólito. Um rapaz que trabalhava numa empresa com a qual mantive negócios em Santa Catarina me informa que está morando na Alemanha. Pergunto em que posso ajudá-lo e instantes depois chega a resposta. Imagina que conheço inúmeras empresas naquele país e pede que o ajude a conseguir um emprego por lá.  Não tenho este condão, mas na réplica perguntei onde mora e se tem cidadania europeia. Como escreveu que está morando, sou levado a crer que se foi de mala e cuia. Por outro lado, pelo simples fato de sequer ter mencionado a cidade em que se encontra, me parece que topa trabalhar desde o Zugspitze, na Bavária, até a ponta mais setentrional da pátria de Bismarck. 

Tem sobrenome alemão, formação técnica e alguma qualificação, mas a parte que lhe toca naquele latifúndio não é das melhores. Poderá candidatar-se a operário de uma fundição, por exemplo, segmento em que quase não há alemães no chão de fábrica. Por ter origem alemã, ainda que aculturado, talvez tenha fantasiado que o receberiam como a uma ovelha tresmalhada por este mundo de Deus. De volta ao chão do tataravô de seu bisavô, é como um tijolo que não se encaixa na parede da qual seu ancestral saiu um dia. E, ademais, não é mais que um tijolo.

Quando terá chegado? Não sei, mas a primeira impressão é a de que seu planejamento foi distorcido pela ansiedade. Quem não sabe exatamente o que procura, quase sempre acaba não achando. Não faz muito, outra pessoa me pediu conselho sobre oportunidades lá fora. Dentre as razões que a compeliam estava o desejo de aprender inglês. Respondi que deveria sobrepesar bem as coisas e que não seria difícil aprender a língua por aqui mesmo. Não voltou a escrever.

Sou avesso a considerações sobre destino e a conversas fatalistas, mas não posso riscar do vocabulário as palavras sorte e azar. Seja num momento de euforia ou profundo aborrecimento, por vezes sintetizam um universo de coisas, dispensando tratados explicativos. Assim, alguns parecem ter inseparável sorte, enquanto outros abusam do azar.

Consultando bancos de dados, descobre-se que os nascimentos, no mundo, situam-se na casa de trezentos mil por dia. Destes novos habitantes da Terra, uns oito mil têm o azar de nascer no Brasil, terra que agora se vê às voltas com a febre amarela. Têm o azar de nascer num país em que se deu um dos maiores desastres ambientais da história, justamente com uma empresa  estrangeira que leva minério e nos deixa buracos. Um país em que Sarnei e Calheiros têm voz ativa, o Brasil das facções criminosas a desafiar o Estado, um país em que a demagogia venceu o bom senso, um Brasil no qual morre, de forma violenta, mais gente do que na guerra da Síria.

Mais ou menos oito mil crianças azaradas nascem todo dia num país com roubalheira endêmica, um Brasil despudorado, cuja indústria derrete enquanto os bancos crescem em plena recessão. Mais ou menos oito mil crianças, que poderiam nascer no Canadá, na Suíça, ou na Alemanha, ou na Inglaterra, nascem no Brasil a cada dia, sem que seus pais saibam exatamente para onde estamos indo. São crianças tão azaradas que inventaram de nascer num país no qual os cargos públicos pagam o que a iniciativa privada nacional não consegue pagar. Vieram à luz num Brasil sem previdência única, abriram os olhos num país no qual todos são iguais perante a lei só da boca pra fora. São milhares de inocentes que terão infância miserável, quando não órfã também.

Nossa juventude anda perdida. Boa parte dela não gosta de ser brasileira. E isto vem de longe. Ariano Suassuna, numa das preleções que deu no final da vida, disse que no século XVIII os brasileiros queriam ser portugueses, no século XIX, franceses, e no século XX, norteamericanos. Hoje, suspeito que querem ser quase qualquer coisa, menos brasileiros. Ora, se alguém é o que não gostaria de ser, não é um traidor. Está mais pra frustrado que pra apóstata. Mas se, como eu, nasceu no solo de Macunaíma e não pode reivindicar outra cidadania, então é e morrerá brasileiro da gema. E melhor fará se aceitar-se, como aliás preconiza a “cura” nos divãs.

É claro que poderia ser pior. Aí estão o Haiti, a Nigéria e o Iêmen para que possamos manter o ufanismo. A grande pergunta a ser respondida pelos brasileiros é como conseguem ser azarados os filhos que nascem neste berço esplêndido. Cá no meu canto, acho que enquanto formos tão boçais, enquanto quisermos imitar os gringos, não tem jeito. A propósito, vale lembrar que o brilhante Ariano Suassuna, pensador que faz falta, nunca saiu do Brasil. E isto nunca o diminuiu.

J. B. Teixeira



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