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sábado, 3 de junho de 2017

A Camisa de Sagração do Rei Luís XV de França

Há já algum tempo foi-me concedida a oportunidade de assistir a várias procissões na Vila de Mafra, tendo então escrito artigos sobre essas tradições seculares. Referi nessa altura, que a Real Irmandade do Santíssimo Sacramento de Mafra possuía no seu espólio a camisa de sagração do Rei Luís XV de França constituindo o único traje de sagração régia francesa, conhecido, que sobreviveu anterior à Revolução Francesa. No sentido de obter alguns dados complementares, que me permitissem, com dados fidedignos, abordar este tema, desloquei-me novamente a esta bela Vila de Mafra. Em Mafra e, sobretudo, nos meios ligados à Irmandade do Santíssimo Sacramento, sempre se falou e contou entre avós e netos, que a camisa que veste a Imagem de S. Luís Rei de França, era uma camisa que havia pertencido ao Rei Luís XV. No inventário dos bens pertencentes à Irmandade, datado de 1748, encontra-se uma nota à margem que menciona a proveniência da camisa. Trata-se de uma peça única que integra o património histórico-artístico das procissões quaresmais realizadas sob a responsabilidade desta Irmandade.

Durante a menoridade de Luís XV, o irmão mais novo do Rei D. João V de Portugal, o Infante D. Manuel, de passagem por França, assistiu à Sagração do jovem Rei, em Reims (25 de Outubro de 1722). Presume-se que tenha sido o próprio D. Manuel que trouxe a camisa da Sagração de Luís XV ao seu irmão D. João V.

Este Rei ordenou, nos primeiros anos do século XVIII, que se edificasse o Convento de Mafra que foi destinado para a Ordem Franciscana e uma imponente Basílica. Neste grandioso conjunto arquitectónico, foi igualmente incluído um Palácio Real. A primeira pedra da obra foi benzida em 1717, sendo a Basílica sagrada com grande fausto, a 22 de Outubro de 1730, dia do aniversário do Rei, em cuja cerimónia participou toda a Corte e a Família Real.

Por essa altura os Irmãos da Venerável Ordem Terceira da Penitência de S. Francisco tinham em mente tornar viável a realização da Procissão da Penitência, no caso de o Rei estar de acordo. O Rei não só aprovou como viria a contribuir financeiramente para que a mesma fosse realizada com “muita decência”. Prova disso foi ter chamado o escultor Manuel Dias, para que, além de outras 14 imagens, realizasse também a imagem de S. Luís em 1740. Por outro lado o ourives António Rodrigues Leão, executou a figura do sol, letreiros, coroas e cetros de latão dourado, em virtude de ser um dos melhores ourives em prata. A preocupação do Rei foi igualmente notória no sentido de que S. Luís, Rei de França, fosse vestido como lhe competia, contribuindo com as sedas e veludos, alargando a oferta às outras imagens. O Santo Lenho, o Pálio, as capas para quem transportava o Pálio também contaram com o apoio do Rei. Gostaria de dar ênfase ao facto de o Rei D. João V ter uma preocupação enorme para que a Procissão fosse realizada de acordo com a magnificência que desejava para tudo o que dissesse respeito à Basílica de Mafra, e especialmente à imagem de S. Luís, Rei de França, de quem, certamente seria fiel devoto. A este propósito, recordo uma frase proferida por S. Luís: “eu te exorto, em primeiro lugar, a que ames o Senhor teu Deus, com todo o teu coração, porque sem isso ninguém se pode salvar”.

Face a este contexto, não era de estranhar que o rei tivesse contribuído com uma peça recebida como oferta protocolar do Rei Luís XV, trazida pelo seu irmão D. Manuel, como atesta o que se encontra escrito na margem do inventário, que passo a transcrever:

“Do oitavo andor a camisa deste vestido é a mesma que serviu a El Rei de França Luís XV na sua Sagração; e veio enquanto se não manda outra, porque, se vier irá ser para quem deu o vestido”. É notória a vontade do Rei D. João V em fazer coincidir tanto nas formas como nas cores, as vestes de S. Luís com as que eram utilizadas pelos Reis de França. De salientar que, em condições normais, após a Sagração do Rei, o Arcebispo que, depois de ter tirado com uma colher de ouro o óleo da Santa Âmbula e ter misturado com o óleo do Crisma na patena do cálice de S. Remígio, executa a cerimónia da unção santa, ungindo o Rei na parte superior da cabeça, do peito e no meio das costas em ambas as espáduas e nas palmas das mãos. Seguidamente, torna-se a reconduzir a Santa Âmbula. A camisa e as luvas que tocaram a unção santa são entregues ao arcebispo para que as queime. Até aos dias de hoje, não foi possível encontrar uma explicação que justificasse o facto de a camisa ter sido poupada à destruição, pelo que se acredita na possibilidade de ter sido feita uma oferta protocolar de Luís XV a D. João V. Assim sendo, a camisa constitui um artefacto da maior raridade e interesse sob o ponto de vista histórico.

A camisa da imagem processional é de pano de linho com aplicações de rendas no colarinho e nos punhos. Possui três aberturas verticais, uma na frente de cada braço ao nível do cotovelo, todas decoradas com entremeio de renda de bilros. Muito mais haveria a narrar sobre esta camisa. Contudo, espero ter despertado o interesse do leitor para, numa próxima oportunidade, assistir à Procissão da Penitência da Ordem Terceira de S. Francisco, dita dos Terceiros, que tem lugar há séculos, sob a responsabilidade da Real Irmandade do Santíssimo Sacramento desde 1866, a quem  na pessoa de D. Tiago Henriques agradeço do fundo do coração toda a informação facultada, que permitiu a realização deste artigo bem como todo o esforço desenvolvido na conservação, recuperação e estudos de caráter científico no sentido de valorizar e perseverar a história de Portugal. Esta procissão, hoje, como em 1740, continua a ter lugar no quarto domingo da Quaresma. 
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Concluo com uma frase de S. Luís ao seu filho: “Guarda meu filho, um coração compassivo para com os pobres, infelizes e aflitos e, quando puderes, auxilia-os e consola-os. Por todos os benefícios que te foram dados por Deus, rende-Lhe graças para te tornares digno de receber maiores”

S. Luís com todas as alfaias

Maria Helena Paes



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