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domingo, 30 de abril de 2017

Filoxera

Anos atrás me pus a pesquisar sobre os ancestrais de minhas filhas pelo lado materno. Tudo começou quando Patrícia, a primogénita, encontrou um documento fundamental, um elo: a cópia da certidão de batismo de um deles, emitida em Portugal. Com auxílio de lupa e muita  paciência, decifrei as palavras que se escondiam no tempo e na caligrafia. Os parentes eram do Mesão Frio, mais especificamente de um lugarejo chamado Barqueiros. A partir de então estendi a pesquisa ao Museu da Imigração, em São Paulo, e em material microfilmado a que tive acesso. Reconstituí uma árvore genealógica que o machado do tempo derrubara. De roldão descobri que já no século XIX os livros de batismo do interior de Portugal revelavam um número nada desprezível de mães solteiras. Um senhor escândalo para a época, certamente. Também aprendi que com grande frequência o Padre assinava sozinho o registo de eventos como casamento e batizado: boa parte dos moradores da região era composta por analfabetos.

Fiz à distância tudo que foi possível, até que por fim visitei a região. Chegando a Barqueiros, num domingo, interpelei um transeunte. Disse a ele que meu intuito era o de descobrir algum descendente com sobrenome Pinto Dias. O gajo não só falou pelos cotovelos como me convidou para tomar assento em sua casa. Me mostrou o esboço de um livro sobre a história do local, escrito por seu irmão, comunista como ele. Duvidei da convicção de ambos quando disse que infelizmente não poderia me ajudar mais, porquanto havia muito não falava com o irmão. A razão da discórdia? A divisão de uma herança. Fiquei espantado com tanta convicção ideológica.  Quase tanto quanto meses atrás, ao ler o que um ateu confesso escrevera sobre a morte de um amigo. Pedia que este lançasse luzes e derramasse versos de onde estivesse. Não sabia que um ateu pode crer em vida depois da morte. Deve pertencer a um ramo do ateísmo português.

No dia seguinte procurei o irmão, mais materialista que dialético. Trabalhava no turno da noite, numa modesta estação de trem. Me obsequiou com um opúsculo já lançado de suas pesquisas. Nos dias que por lá me demorei entendi, sempre contornando o Rio Douro, a coragem de uma gente que embarcada levava a produção de vinho do Porto para a foz do rio. Muitas mulheres gastaram seus joelhos rezando para que os maridos retornassem. Aquelas águas, então ligeiras, viuvaram muita gente. Por conta da construção de eclusas, as águas do Douro, entre encostas verdes e parreirais, são hoje calmas, mas não perderam as áureas faíscas que as batizaram.

Visitei o pequeno cemitério de Barqueiros, perscrutei onde podia, mas chegara ao último dia sem ter encontrado um parente sequer. Resolvi então dar a última cartada. Parei o carro no meio do vilarejo e comecei a perguntar a um e outro se conhecia alguém com o sobrenome procurado. Minhas filhas encheram-se de vergonha, mas minutos depois, em meio à algaravia de maritacas humanas, descobrira uma pista. Restara Seu José, dono de modesto parreiral. Minhas filhas, já agastadas, padeceram um pouco mais. Para chegar ao local designado, coloquei no carro um cidadão que não tomava banho há pelo menos algumas semanas. Quando chegamos, meu malcheiroso guia lascou para um portuguesinho prá lá de desconfiado: “José, tens parentes no Brasil?”. Não é da tua conta, foi a resposta. Diante de tão animadora recepção, logo informei que não estava atrás de heranças, senão de um registo puramente histórico. O cenho de Seu José aos poucos desanuviou-se. Poucos minutos depois mostrava-se constrangido pela desconfiança inicial. Nada mais obtive. Chegara ao fim, como os navegantes de Barqueiros, cuja profissão se foi quando inauguraram a estrada de ferro do Mesão ao Porto. Um só vagão levaria, a partir de então, as pipas tantas que vários barcos rabelos penosamente transportariam pelas corredeiras de um rio muito traiçoeiro. O que pode o tempo? Até o nome Barqueiros perdera atualidade. 

A linha de ferro empurraria centenas de famílias para o Brasil. Mais poderosa ainda foi a praga que se abateu nas encostas do Douro: a filoxera, um minúsculo insecto, aparentado com pulgões. Doença terrível, devastou os parreirais portugueses, arruinou a fabricação de vinhos na França e afetou a viticultura mundial. Apenas as vinhas cultivadas sobre areias, como no Chile, ficaram a salvo. A cura para a filoxera até hoje inexiste. A enxertia foi a solução, mas no Chile é possível cultivar cepas originais, sem enxertos, o que permitiu inclusive recuperar parreirais europeus.

A escolha de um Papa argentino me fez lembrar desta história. Abatida pela filoxera materialista, pelo pulgão agnóstico, a Europa precisa ser reevangelizada. Onde buscar as cepas da vinha do Senhor? Em meio a tantos lugares, foi quase no fim do mundo que recrutaram um Jesuíta, para ser Francisco e pelo exemplo conquistar o mundo. Coisas da biologia. Coisas de Deus.

J. B. Teixeira



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