Como fazer do V centenário da Reforma protestante uma ocasião de graça e de reconciliação para toda a Igreja
Quinta pregação de Quaresma 2017 (Fto. Osservatore © Romano) |
(ZENIT – Cidade do Vaticano, 7 Abr. 2017).- O Papa Francisco
participou na manhã desta sexta-feira da V meditação de Quaresma, do
pregador da Casa Pontifícia, Fr. Raniero Cantalamessa na capela Redemptoris Mater, no Vaticano.
Quinta pregação de Quaresma 2017, Pe. Raniero Cantalamessa, ofmcap.
“MANIFESTOU-SE A JUSTIÇA DE DEUS”
Como fazer do V centenário da Reforma protestante uma ocasião de graça e de reconciliação para toda a Igreja
1. As origens da Reforma protestante
O Espírito Santo que – vimos nas meditações anteriores – nos insere
na plena verdade da pessoa de Cristo e no seu mistério pascal, nos
ilumina também sobre um aspecto crucial da nossa fé em Cristo, ou seja,
sobre a maneira pela qual a salvação alcançada por ele chega a nós hoje
na Igreja. Em outras palavras, sobre o grande problema da justificação
do homem pecador por meio da fé. Acredito que tentar lançar luz sobre a
história e sobre o estado atual deste debate seja a melhor forma para
fazer do acontecimento do V centenário da Reforma protestante uma
ocasião de graça e de reconciliação para toda a Igreja.
Não podemos deixar de ler todo o trecho da Carta aos Romanos, sobre o qual este debate está concentrado. Diz:
“Agora, porém, independentemente da Lei, se manifestou a justiça de
Deus, testemunhada pela Lei e pelos Profetas, justiça de Deus que
opera pela fé em Jesus Cristo, em favor de todos os que crêem – pois não
há diferença, visto que todos pecaram e todos estão privados da
glória de Deus – e são justificados gratuitamente, por sua graça, em
virtude da redenção realizada em Cristo Jesus: Deus o expôs como
instrumento de propiciação, por seu próprio sangue, mediante a fé. Ele
queria assim manifestar sua justiça, pelo fato de ter deixado sem
punição os pecados de outrora, no tempo da paciência de Deus; ele
queria manifestar sua justiça no tempo presente para mostrar-se justo e
para justificar aquele que apela para a fé em Jesus. Onde está, então,
o motivo de glória? Fica excluído. Em força de que lei? A das obras? De
modo algum, mas em força da lei da fé. Porquanto nós sustentamos que o
homem é justificado pela fé, sem a prática da Lei”
Como foi possível que esta mensagem tão consoladora e luminosa tenha
se tornado o pomo da discórdia no seio do cristianismo ocidental,
dividindo a Igreja e a Europa em dois continentes religiosos diferentes?
Ainda hoje, na pessoa religiosa mediana, em certos países do Norte da
Europa, tal doutrina é o divisor de águas entre catolicismo e
protestantismo. Eu mesmo ouvi de vários fieis leigos luteranos a
pergunta: “Você crê na justificação pela fé?”, como a condição para
poder ouvir aquilo que eu dizia. Esta doutrina é definida pelos próprios
iniciadores da Reforma “o artigo com o qual a Igreja está em pé ou cai”
(articulus stantis et cadentis Ecclesiae).
Devemos remontar à famosa “experiência da torre” de Martinho Lutero
que teve lugar nos anos de 1511 ou 1512. (Tem essa denominação porque se
pensa que ocorreu em uma cela do convento agostiniano de Wittenberg
chamado de “a Torre”). Lutero estava angustiado, quase em nível de
desespero e ressentimento para com Deus, por causa do fato de que com
todas as suas práticas religiosas e penitências ele não conseguisse
sentir-se acolhido e em paz com Deus. Foi aqui que, de repente, apareceu
de súbito em sua mente a palavra de Paulo em Romanos 1, 17: “O justo
vive pela fé”. Foi uma libertação. Ele próprio, narrando sua
experiência, próximo à sua morte, escreveu: “Quando descobri isso, me
senti renascer e pareceu-me que se escancaravam para mim as portas do
paraíso1”.
Precisamente, alguns historiadores luteranos datam este momento, ou
seja, alguns anos antes do 1517, como o verdadeiro começo da Reforma. A
ocasião que transformou esta experiência interior em uma verdadeira e
real avalanche religiosa foi o incidente das indulgências que fez Lutero
se decidir a afixar as famosas 95 teses na Igreja do Castelo de
Wittenberg, em 31 de outubro de 1517. É importante notar esta sucessão
histórica dos fatos. Ela nos diz que a tese da justificação pela fé e
não pelas obras, não foi o resultado da polémica com a Igreja da época,
mas a sua causa. Foi uma verdadeira iluminação do alto, uma “experiência
Erlebnis, tal como foi definida por ele próprio.
Surge espontaneamente uma pergunta: como podemos explicar o terremoto
causado pela tomada de posição de Lutero? O que havia nessa decisão de
tão revolucionário? Santo Agostinho tinha dado, da expressão “justiça de
Deus”, a mesma explicação de Lutero muitos séculos antes. “A justiça de
Deus (justitia Dei) – tinha escrito – é aquela através da qual, pela
sua graça, nos tornamos justos, exatamente como a salvação de Deus
(salus Dei) (Sal 3,9) é aquela pela qual Deus nos salva2”.
São Gregório Magno tinha dito: “Não se vai das virtudes à fé, mas da fé às virtudes3”.
E São Bernardo: “Eu, aquilo que não posso alcançar por mim mesmo, me
aproprio (usurpo!) com confiança do lado trespassado do Senhor, porque é
cheio de misericórdia. […] E o que sobra da minha justiça? Oh, Senhor,
lembrar-me-ei somente da tua justiça. De fato, ela é também a minha,
porque tu és para mim justiça da parte de Deus (cf. 1 Cor 1, 30)4“.
S. Tomas de Aquino foi ainda mais longe. Comentando a sentença paulina
“a letra mata, mas o Espírito vivifica” (2 Cor 3,6), ele escreveu que
por letra entendem-se também os preceitos morais do evangelho, pelos
quais “também a letra do Evangelho mataria, se não se acrescentasse,
dentro, a graça da fé que cura5”.
O Concílio de Trento, convocado em resposta à Reforma, não encontra
dificuldade em reafirmar esta convicção do primado da fé e da graça,
embora considerando (como, aliás, fará todo o ramo da Reforma encabeçada
por Calvino) as obras e a observância da lei, necessárias no contexto
de todo o processo da salvação, segundo a fórmula paulina da “fé que
opera pela caridade” (“fides quae per caritatem operatur”) (Gal 5,6)6.
Fica assim explicado como, no novo clima de diálogo ecuménico, tenha
sido possível chegar à declaração conjunta da Igreja Católica e da
Federação mundial das Igrejas Luteranas, sobre a justificação pela graça
mediante a fé, assinada no dia 31 de Outubro de 1999, na qual se
reconhece um acordo fundamental, embora não total, sobre tal doutrina.
Então, a Reforma Protestante foi um caso de “muito barulho por nada”?
Fruto de um equívoco? Devemos responder com firmeza: não! É verdade que
o magistério da Igreja não tinha anulado nunca as decisões tomadas nos
concílios anteriores (especialmente contra os Pelagianos); nunca negou o
que havia escrito Agostinho, Gregório, Bernardo, Tomás de Aquino. As
revoluções, no entanto, não surgem pelas ideias ou pelas teorias
abstratas, mas por situações históricas concretas, e a situação da
Igreja, há tempo, não refletia realmente aquelas convicções. A vida, a
catequese, a piedade cristã, a direção espiritual, por não falar depois
da pregação popular: tudo parecia afirmar o contrário, ou seja, que o
que conta são as obras, o esforço humano. Além disso, por “boas obras”
não se entendiam no geral aquelas enumeradas por Jesus em Mateus 25, sem
as quais, diz ele próprio, não se entra no reino dos céus;
entendiam-se, ao invés, peregrinações, velas votivas, novenas, ofertas à
Igreja e, como contrapartida a estas coisas, as indulgências.
O fenómeno tinha raízes profundas comuns a todo o cristianismo e não
só ao latino. Depois que o cristianismo se tornou religião do Estado, a
fé era absorvida naturalmente através da família, da escola, da
sociedade. Não era tão importante insistir no momento em que se chega à
fé e na decisão pessoal com a qual se torna crentes, mas insistir nas
exigências práticas da fé, em outras palavras, na moral, nos costumes.
Um sinal indicador desta mudança de interesse é indicado por Henri de
Lubac em sua História da exegese medieval. Na fase mais adiantada, a
ordem dos quatro sentidos da Escritura era: sentido histórico literal,
sentido cristológico ou de fé, sentido moral e sentido escatológico7.
Cada vez mais, esta ordem é substituída por uma diferente na qual o
senso moral é anterior ao cristológico ou de fé. Antes do “em que
acreditar”, se coloca o “o que fazer.” O dever vem antes do dom. Na vida
espiritual, se pensava, em primeiro lugar há o caminho da purificação,
em seguida, o da iluminação e da união8.
Sem perceber, se dizia exatamente o oposto do que havia escrito São
Gregório Magno, ou seja, que “não chega das virtudes à fé, mas da fé às
virtudes”.
2. A doutrina da justificação pela fé, depois de Lutero
Depois de Lutero e bem próximo aos outros grandes dois reformadores,
Calvino e Zwiglio, a doutrina da justificação pela fé, naqueles que
transformaram-na em um modo de vida, teve por efeito uma nítida melhoria
da qualidade da vida cristã, graças à circulação da palavra de Deus em
língua vernácula, aos muitos hinos e cânticos espirituais, aos subsídios
escritos, tornados acessíveis ao povo pela recente invenção e difusão
da imprensa.
Na Frente externa, a tese da justificação só pela fé tornou-se o
divisor de águas entre catolicismo e protestantismo. Em pouco tempo (em
parte pelo próprio Lutero), essa oposição se ampliou e se tornou também
oposição entre cristianismo e judaísmo, com os católicos que
representavam, segundo alguns, a continuação dos legalismos e
ritualismos judaicos e o protestantismo que representava a novidade
cristã.
A polémica anticatólica casa-se com a polémica anti-judaica que, por
outras razões, não estava menos presente no mundo católico. O
cristianismo teria se formado por oposição, não por derivação, do
judaísmo. A partir de Ferdinand Christian Baur (1792-1860), vai se
estabelecendo a tese das duas almas do cristianismo: aquela petrina do
assim chamado “protocatolicismo” (Frühkatholizismus) e aquela paulina
que encontra a sua expressão mais realizada no protestantismo.
Esta convicção aumenta a distância entre a religião cristã e o
judaísmo. Buscar-se-á explicar as doutrinas e os mistérios cristãos
(incluindo o título de Kyrios, Senhor, e o culto divino de Jesus), como
resultado do contato com o helenismo. O critério utilizado para julgar a
autenticidade ou não de uma sentença e de um fato do Evangelho é a sua
alteridade em relação ao que é atestado no ambiente judaico do tempo. Se
não foi esta a razão principal do epílogo trágico do antisemitismo, o
certo é que, juntamente com a acusação de deicídio, favoreceu-o,
dando-lhe uma tácita cobertura religiosa.
Desde os anos 70 do século passado, houve uma reversão radical nesta
área dos estudos bíblicos. É necessário dizer algo sobre isso para
esclarecer qual é o estado atual da doutrina paulina e luterana da
justificação gratuita pela fé em Cristo. A natureza e o objetivo deste
meu discurso me dispensam de citar os nomes dos autores modernos
comprometidos neste debate. Quem é especialista na matéria não terá
dificuldade em dar nomes aos autores das teses aqui mencionadas, aos
demais, eu acho, não interessam os nomes, mas as ideias.
Trata-se da assim chamada “terceira via de pesquisa sobre Jesus
histórico” (terceira depois daquela liberal do século XIX e aquela de
Bultmann e seguidores do século XX). Esta nova perspectiva consiste em
reconhecer no judaísmo a verdadeira matriz dentro da qual se formou o
cristianismo, dissipando o mito da irredutível alteridade do
cristianismo com relação ao judaísmo. O critério com o qual se julga a
maior ou menor probabilidade de que uma sentença e um fato da vida de
Jesus sejam autênticos é a sua compatibilidade com o judaísmo do seu
tempo, não a sua incompatibilidade como se pensava no passado.
Algumas vantagens desta nova abordagem são evidentes. Reencontra-se a
continuidade da revelação. Jesus se coloca dentro do mundo judaico, na
linha dos profetas bíblicos. Se faz, também, mais justiça com o judaísmo
do tempo de Jesus, mostrando a sua riqueza e variedade. O problema é
que se tem ido tão além desta conquista a ponto de transformá-la em uma
perda. Em muitos representantes desta terceira pesquisa, Jesus acaba por
dissolver-se completamente no mundo judaico, sem mais se diferenciar, a
não ser por alguma interpretação particular da Torá. Ele acaba reduzido
a um dos profetas hebraicos, um “carismático itinerante”, “um cidadão
judeu do Mediterrâneo”, como escreveu alguém. A nova pesquisa histórica
produziu estudos de outro nível (por exemplo, os de James D. G. Dunn
sobre “a nova perspectiva sobre Jesus”); mas aquela que eu mencionei é a
versão que circulou mais amplamente a nível de divulgação e a que mais
influenciou a opinião pública.
Quem revelou a natureza ilusória dessa abordagem para um diálogo
sério entre judaísmo e cristianismo foi precisamente um judeu, o rabino
americano Jacob Neusner9.
Aquele que leu o livro de Bento XVI sobre Jesus de Nazaré, conhece o
pensamento deste rabino com quem ele conversa em um dos capítulos mais
emocionantes do seu livro. Jesus não pode ser considerado um judeu como
qualquer outro, diz Neusner, dado que coloca-se acima de Moisés e se
proclama: “Senhor também do Sábado”.
Mas é sobretudo no que diz respeito a São Paulo que a nova pesquisa
mostra toda a sua insuficiência. De acordo com um de seus mais
conhecidos representantes, a religião das obras, contra a qual o
apóstolo se contrapõe com muita veemência em suas cartas, não existe na
realidade. O judaísmo, também no tempo de Jesus, é um “nomismo da
aliança” (Covenantal Nomism), ou seja, uma religião baseada sobre a
iniciativa gratuita de Deus e sobre o seu amor; o cumprimento da lei é a
sua consequência, não a causa; essa serve para permanecer na aliança,
não para entrar nela. A religião judaica continua a ser aquela dos
patriarcas e dos profetas, em cujo centro está a hesed, a graça e a
benevolência divina.
Procura-se, então, alguns possíveis alvos diferentes para a polémica
de Paulo: não “os judeus”, mas os “judaico-cristãos”, ou aquele tipo de
judaísmo “zeloso” que se sente ameaçado pelo mundo pagão circundante e
reage na forma dos Macabeus. Em suma, aquele que havia sido o seu
judaísmo, antes da conversão, e que o tinha levado a perseguir os fieis
helenísticos como Estevão.
Mas essas explicações são insustentáveis e acabam tornando
incompreensível e contraditório o pensamento do Apóstolo. Nos capítulos
anteriores o Apóstolo fez uma acusação tão universal quanto a própria
humanidade: “Não há diferença, porque todos pecaram e todos estão
privados da glória de Deus” (Rm 3, 22-23); por três vezes repete-se a
expressão “judeus e gregos”, ou seja, judeus e gentios, ao mesmo tempo.
Como alguém poderia pensar que uma acusação tão universal, tenha uma
aplicação limitada a um pequeno grupo de fieis?
3. A justificação pela fé: doutrina de Paulo ou Jesus?
A dificuldade nasce, na minha opinião, do fato de que a exegese de
Paulo se comporta, às vezes, como se o problema começasse com ele e como
se Jesus não tivesse dito nada a respeito. A doutrina da justificação
gratuita pela fé não é uma invenção de Paulo, mas a mensagem central do
Evangelho de Cristo, independente da forma que tenha sido conhecida pelo
Apóstolo: se por revelação direta do ressuscitado, ou pela “tradição”,
que ele diz ter recebido e que não era certamente limitada às poucas
palavras do kerygma (cf. 1 Cor 15, 3). Se não fosse assim, teriam razão
aqueles que dizem que Paulo, não Jesus, é o verdadeiro fundador do
cristianismo.
O núcleo da doutrina está contido já na palavra “Evangelho”, boa
notícia, que Paulo com certeza não inventou do nada. No início de seu
ministério, Jesus proclamava: “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está
próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1, 15). Como poderia,
este proclama, chamar-se “boa notícia” se fosse somente um ameaçador
apelo para mudar de vida? Aquilo que Cristo inclui na expressão “reino
de Deus” – isto é, a iniciativa salvífica de Deus, a sua oferta de
salvação para a humanidade – , são Paulo chama de “justiça de Deus”, mas
se trata da mesma fundamental realidade. “Reino de Deus” e “justiça de
Deus” são reunidos pelo próprio Jesus quando diz: “Buscai primeiro o
reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6, 33).
Quando Jesus dizia: “Arrependei-vos e crede no Evangelho”, ensinava,
portanto, a justificação por meio da fé. Antes dele, converter-se
significava sempre “voltar atrás”, como indica o próprio termo hebraico
shub; significava voltar à aliança quebrada, através de uma observância
renovada da lei. Converter-se, consequentemente, tem um significado
principalmente ascético, moral e penitencial e se consegue através da
mudança de vida. A conversão é vista como condição para a salvação; o
significado é: arrependei-vos e sejam salvos; convertei-vos e a salvação
virá a vós. Este é o sentido de converter-se até João Batista
inclusive.
Na boca de Jesus este significado moral passa para segundo plano
(pelo menos no início da sua pregação), com relação a um significado
novo, até agora desconhecido. Converter-se não significa mais voltar
atrás, à antiga aliança e à observância da lei; significa, pelo
contrário, dar um salto adiante, entra na nova aliança, agarrar este
Reino que apareceu, entrar nele. E entrar nele por meio da fé.
“Convertei-vos e crede” não significa duas coisas diferentes e
sucessivas, mas a mesma ação: convertei-vos, ou seja, crede;
convertei-vos crendo! Converter-se não significa tanto “arrepender-se”,
mas “aperceber-se”, isto é, dar-se conta da novidade, pensar de forma
nova.
Diferentes dados evangélicos, dentre os que mais remontam a Jesus,
confirmam esta interpretação. Um é a insistência com que Jesus afirma a
necessidade de se tornar como uma criança para entrar no reino dos céus.
A característica da criança é que não tem nada para dar, só pode
receber; não pede uma coisa aos pais por tê-la conquistado, mas somente
porque sabe que é amada. Aceita a gratuitidade.
Também a polémica paulina contra a pretensão de salvar-se pelas
próprias obras não nasce com ele. É necessário negar incontáveis fatos,
para excluir do evangelho todas as referências polémicas a um certo
número de “escribas, fariseus e doutores da lei”. Não é possível deixar
de reconhecer na parábola do fariseu e do publicano ao mesmo tempo os
dois tipos de religiosidade, contrapostas mais tarde por são Paulo: a
daquele que confia em seu próprio desempenho religioso e a daquele que
confia na misericórdia de Deus e volta à casa “justificado” (Lc 18,14).
Não se trata da tendência presente em uma religião, mas em todas as
religiões, incluindo, naturalmente, a dos cristãos. (Os evangelistas não
transmitiram as palavras de Jesus contra os fariseus para corrigir os
fariseus, mas para advertir os cristãos!). Se Paulo persegue o judaísmo,
é porque esse é o contexto religioso no qual vivem, ele e os seus
interlocutores, no entanto, se trata mais de uma categoria religiosa do
que étnica. Judeus, no contexto, são aqueles que, à diferença dos
pagãos, possuem uma revelação, conhecem a vontade de Deus e, armados com
esse fato, se sentem seguros no lado de Deus e julgam o resto da
humanidade. Já no século III, Orígenes dizia que agora, quem veste a
carapuça das palavras do Apóstolo, são “os chefes das igrejas: bispos,
presbíteros e diáconos”, ou seja, os guias, os mestres do povo10.
A dificuldade de conciliar a imagem que Paulo nos dá da religião
judaica com aquela que conhecemos dela de outras fontes deriva de um
fundamental erro de método. Jesus e Paulo tem a ver com a vida vivida,
com o coração; os estudiosos, pelo contrário, com os livros e os
testemunhos escritos. As declarações orais ou escritas dizem o que as
pessoas sabem que precisam ser ou que gostariam de ser, não,
necessariamente, aquilo que são. Não é surpreendente encontrar nas
Escrituras e em fontes rabínicas da época afirmações comoventes e
sinceras sobre a graça, a misericórdia, a iniciativa preveniente de
Deus; mas, uma coisa é o que a Escritura diz ou que os mestres ensinam,
outra coisa o que os homens têm no coração e que governa as suas ações.
O que aconteceu no momento da Reforma protestante ajuda a entender a
situação na época de Jesus e de Paulo. Se se olha para a doutrina
ensinada nas escolas de teologia da época, para as definições antigas
jamais contestadas, para os escritos de Agostinho reverenciados com
grande honra, ou também só para a Imitação de Cristo, leitura diária das
almas piedosas, se achará uma magnífica doutrina da graça e não se
compreenderá contra quem Lutero brigava; mas se se olha para a vivência
cristã da época, o resultado, já vimos, é bem diferente.
4. Como pregar a justificação pela fé hoje
O que concluir desse rápido olhar aos cinco séculos desde o começo da
Reforma protestante? É vital, de fato, que o centenário da Reforma não
seja desperdiçado permanecendo prisioneiros do passado, procurando ver
quem errou ou quem tem razão, talvez em um tom mais conciliador do que
no passado. Devemos, pelo contrário, dar um passo à frente, como quando
um rio chega a um estreitamente de leito e retoma o seu curso em um
nível mais alto.
A situação mudou desde então. Os problemas que causaram a separação
entre a Igreja de Roma e a Reforma foram particularmente as indulgências
e o modo como ocorre a justificação do ímpio. Mas podemos dizer que
estes são os problemas que levantam ou derrubam a fé do homem de hoje?
Em uma ocasião recordo que o cardeal Kasper fez esta observação: para
Lutero o problema existencial número um era como superar o sentido de
culpa e obter um Deus benevolente; hoje o problema é exatamente o
oposto: como dar novamente ao homem o sentido do pecado que desapareceu
totalmente.
Isto não significa ignorar o enriquecimento realizado pela Reforma ou
desejar voltar atrás, à época anterior. Significa, pelo contrário,
permitir que toda a cristandade se beneficie das suas muitas e
importantes conquistas, uma vez libertos de certas distorções e excessos
devido ao clima super-aquecido do momento e da necessidade de endireitar
abusos grosseiros.
Dentre os excessos resultantes da secular concentração sobre o
problema da justificação do ímpio, me parece que um seja o de ter feito
do cristianismo ocidental um anúncio sombrio, todo focado no pecado, que
a cultura laica acabou por combater e rejeitar. A coisa mais importante
não é o que Jesus, com a sua morte, tirou do homem – o pecado – , mas
aquilo que doou, ou seja, o Espírito Santo. Muitos exegetas consideram
hoje o capítulo terceiro da Carta aos Romanos sobre a justificação pela
fé, como inseparável do capítulo oitavo sobre o dom do Espírito e uma
unidade com ele.
A justificação gratuita por meio da fé em Cristo deveria ser pregada
hoje por toda a Igreja e com mais vigor do que nunca. Não, no entanto,
em oposição às “obras” mencionadas no Novo Testamento, mas em contraste
com a pretensão do homem pós-moderno de salvar-se sozinho com a sua
ciência e tecnologia ou com espiritualidades improvisadas e
tranquilizantes. Estas são as “obras” em que o homem moderno confia.
Estou convencido de que, se Lutero voltasse à vida, esta seria a maneira
pela qual ele também pregaria hoje a justificação pela fé.
Uma outra coisa importante devemos aprender todos, luteranos e
católicos, do iniciador da Reforma. Para ele, vimos, a justificação
gratuita pela fé era acima de tudo uma experiência vivida e só mais
tarde teorizada. Infelizmente, depois dele, ela tornou-se cada vez mais
um argumento teológico a ser defendido ou combatido, e sempre menos uma
experiência pessoal e libertadora, a ser vivida na própria relação
íntima com Deus. A Declaração Conjunta de 1999 lembra apropriadamente
que o consenso alcançado por católicos e luteranos sobre verdades
fundamentais da doutrina da justificação deve ter efeitos e encontrar um
impacto, não somente no ensinamento da Igreja, mas também na vida das
pessoas (n. 43).
Nunca devemos perder de vista o ponto principal da mensagem paulina.
Aquilo que o Apóstolo quer por acima de tudo afirmar em Romanos 3 não é
que somos justificados pela fé , mas que somos justificados pela fé em
Cristo; não é tanto que somos justificados pela graça, mas que somos
justificados pela graça de Cristo. É Cristo o coração da mensagem, antes
mesmo que a graça e a fé. É ele, hoje, o artigo com o qual a Igreja
está em pé ou cai: uma pessoa, não uma doutrina.
Devemos regozijar-nos porque é isso que está acontecendo na Igreja e
em maior medida do que geralmente pensamos. Nos últimos meses pude
participar de dois encontros: um na Suíça, organizado por evangélicos
com a participação dos católicos, o outro na Alemanha organizado por
católicos com a participação dos evangélicos. Este último ocorreu em
Augsburg, em janeiro passado, pareceu-me realmente um sinal dos tempos.
Havia 6000 católicos e 2000 luteranos, na maioria jovens, provenientes
de toda a Alemanha. O título em inglês era “Holy Fascination”, Santa
Fascinação. Quem fascinava aquela multidão era Jesus de Nazaré, feito
presente e quase tangível pelo Espírito Santo. Por trás disso, uma
comunidade de leigos e uma casa de oração (Gebetshaus), ativa há anos e
em plena comunhão com a Igreja Católica local.
Não era um ecumenismo de “somos amigos!”. Missa catolicíssima, com
muito incenso, presidida uma vez por mim e uma vez pelo bispo auxiliar
de Augsburg; outro dia, Santa Ceia presidida por um pastor luterano, no
pleno respeito mútuo pela própria liturgia. Adoração, ensinamentos,
música: um clima que só os jovens são capazes de organizar hoje e que
poderia servir como modelo para um evento particular durante as Jornadas
Mundiais da Juventude.
Certa vez perguntei aos responsáveis se devia falar da unidade dos
cristãos; me responderam: “Não, preferimos viver a unidade, mais que
falar dela”. Tinham razão. São sinais do rumo que o Espírito – e com ele
o Papa Francisco – nos convidam a andar.
Tradução de Thacio Siqueira
1 M. Lutero, Prefácio às obras em latim, ed. Weimar vol. 54, p. 186.
2 S. Agostinho, De Spiritu et littera, 32,56 (PL 44, 237).
3 S. Gregorio Magno, Homilias sobre Ezequiel, II, 7 (PL 76, 1018).
4 S. Bernardo de Claraval, Sermões sobre o Cântico, 61, 4-5( PL 183, 1072).
5 S. Tomás de Aquino, Summa theologiae, I-IIae, q. 106, a. 2.
6 Concílio di Trento, “Decretum de iustificatione”, 7, in Denzinger – Schoenmetzer, Enchiridion Symbolorum, ed. 34, nr. 1531.
7 Clássico é o dístico com o qual se expressa esta ordem: Littera gesta docet, quid credas allegoria. / Moralis, quid agas; quo tendas anagogia. A letra ensina o acontecido; o que deve crer, a alegoria. / A moral, o que fazer; onde tender, a anagogia.
8 Cf. Henri de Lubac, Histoire de l’exégèse médiévale. Le quatre sens de l’Ecriture, Paris, Aubier, 1959, Vol. I,1, pp. 139-157.
9 Jacob Neusner, A Rabbi Talks with Jesus, McGill-Queen’s University Press, Montreal 2000.
10 Orígenes, Comentário à Carta aos Romanos, II, 2 (PG 14, 873).
2 S. Agostinho, De Spiritu et littera, 32,56 (PL 44, 237).
3 S. Gregorio Magno, Homilias sobre Ezequiel, II, 7 (PL 76, 1018).
4 S. Bernardo de Claraval, Sermões sobre o Cântico, 61, 4-5( PL 183, 1072).
5 S. Tomás de Aquino, Summa theologiae, I-IIae, q. 106, a. 2.
6 Concílio di Trento, “Decretum de iustificatione”, 7, in Denzinger – Schoenmetzer, Enchiridion Symbolorum, ed. 34, nr. 1531.
7 Clássico é o dístico com o qual se expressa esta ordem: Littera gesta docet, quid credas allegoria. / Moralis, quid agas; quo tendas anagogia. A letra ensina o acontecido; o que deve crer, a alegoria. / A moral, o que fazer; onde tender, a anagogia.
8 Cf. Henri de Lubac, Histoire de l’exégèse médiévale. Le quatre sens de l’Ecriture, Paris, Aubier, 1959, Vol. I,1, pp. 139-157.
9 Jacob Neusner, A Rabbi Talks with Jesus, McGill-Queen’s University Press, Montreal 2000.
10 Orígenes, Comentário à Carta aos Romanos, II, 2 (PG 14, 873).
in
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