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sábado, 19 de novembro de 2016

As Palhinhas de Zenão

(conto de Natal *)
 
Nem sempre o Natal acontece com crianças ou em ambientes bucólicos. A crua realidade passou pela janela do automóvel do Padre Zenão. De mão estendida, o pedinte repetia gestos e palavras enquanto o semáforo numa esquina de Lisboa lhe permitia circular com alguma segurança por entre os automóveis. E voltava a repetir-se a cena ao longo do dia, das semanas e dos meses, com sol ou com chuva. Zenão nada lhe deu. De bolsos vazios, só com documentos na carteira... Mas o dia era de primavera e um padre tem sempre algo para dar: deu-lhe os bons dias e perguntou-lhe pelo nome.
 
O coração do homem saltou-lhe no peito. Deteve-se pasmado, debruçado para a janela, tentando ver na sombra a cara do desconhecido. “Como te chamas?”, voltou a ouvir. Antes de vislumbrar o rosto na sombra, deparou-se com o colarinho, resplandecente de branco à luz do sol, em gritante contraste com o negro da camisa e casaco de Zenão.
 
“Sou Francisco”, respondeu timidamente. E logo o semáforo ficou verde de esperança, mas pondo fim ao diálogo. “Até amanhã, Francisco”, gritou Zenão. E acrescentou em pensamento: “Se Deus quiser”.
 
“Olá Francisco, não tens trabalho?”, perguntou-lhe o sacerdote no dia seguinte. “Pois, não, senhor padre. Era pastor, mas já quase não há gente lá na terra, e aqui são todos doutores, não me ligam!”. O sinal mudou para verde. “Mas Deus vai-te ligar”, gritou Zenão ao arrancar.
 
Aquelas palavras repicaram nos seus ouvidos como os sinos da sua terra, ecoando pelos montes, a fazer-lhe companhia. Aquele padre era a primeira pessoa que lhe dizia algo diferente do “toma lá”, sempre que recebia alguma moeda.
 
“Bom dia, senhor padre. Como é que Deus me vai ligar, se eu já nem sei rezar?”. “Vamos combinar: tu vens ter comigo logo que o sinal ficar vermelho, e eu ensino-te cada dia uma oração.”
 
E assim foi feito. Na primeira lição aprendeu a benzer-se; na segunda começou o “Pai Nosso” que demorou quatro dias a aprender, naquelas aulas de três minutos. Seguiram-se outras orações, jaculatórias e o catecismo. Ah! E leitura. Francisco quase não sabia ler, mas o sacerdote escrevia pequenas palavras em grandes letras como pai, avé, Maria... Por vezes, recortava letras de jornais e colava-as num papel para o habituar a conhecer os diversos tipos de letra. Chegou a levar-lhe livros ilustrados que pedia a algumas mães de família.
 
Chegou o inverno. Francisco progredia na leitura e na doutrina. Guardava os livros em sacos de plástico, e lia-os repetidamente. Um dia, Zenão surpreendeu Francisco: “Amanhã, vou levar-te comigo para te  confessares a um padre da minha paróquia”.
 
Esse dia foi de festa. Francisco tinha tomado banho e apareceu de barba feita e roupas sacudidas. Andar de automóvel! Um espanto! Sentia-se importante e mais ainda quando o Padre Zenão lhe explicou com calma o que era a confissão e o levou a um confessionário. No final da confissão, o padre desconhecido disse-lhe que Jesus estava muito contente com ele e até podia ficar para a Missa e comungar. Quem celebrou foi o seu amigo Zenão que, terminada a Missa, convidou Francisco e o seu confessor para almoçar. E lá foram os três a uma tasca próxima da igreja.
 
A conversa foi animada, recordando o tempo em que Francisco era pastor e a aventura de ter aprendido a rezar “entre luzes patrióticas”, como lhes chamou Zenão, “entre vermelho e verde”.
 
“Sabem” - disse Francisco aos novos amigos – “Foi como cuidar das ovelhas: dar-lhes ervas e palhas, mas fui eu a come-las, uma a uma. Mas este Natal tornei-me importante, um príncipe. Já não vou faltar à Missa do galo, nunca mais!”. 

*Baseado num facto real

Isabel Vasco Costa
11 de Outubro de 2016-10-11


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