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terça-feira, 22 de março de 2016

Imigrantes, crianças abusadas, famílias desfeitas: as meditações de Bassetti para a Via Crucis

Nas reflexões para a Via Crucis da sexta-feira santa o arcebispo de Perugia contempla os dramas presentes e passados. Contudo garante: “Deus é misericórdia”


Photo.va
As crianças violadas nas suas intimidades, os migrantes vítimas da indiferença colectiva, os cristãos perseguidos em diferentes regiões do mundo, os judeus exterminados nos campos de concentração, as famílias ‘destruídas’ e os poderosos que se vangloriam da própria supremacia sobre os mais fracos.

Essas são as imagens dramáticas que acompanham as meditações da Via Sacra da sexta-feira santa preparada pelo cardeal Gualtiero Bassetti. No total 14 meditações que retomam também palavras de São João Paulo II, do padre Primo Mazzolari, do padre David Maria Turoldo, que acompanharão as sugestivas 14 estações no Coliseu.

“Deus é misericórdia” é o título que o arcebispo de Perugia deu às suas reflexões, para garantir que esta é a verdadeira essência de Deus, bem como o canal através do qual Deus alcança o homem. No entanto, ao mesmo tempo, o cardeal pergunta: “Onde está Deus nos campos de extermínio? Onde está Deus nas minas e fábricas onde crianças trabalham como escravas? Onde está Deus nas balsas que afundam no mar Mediterrâneo?”.

“Existem situações de sofrimento que parecem negar o amor de Deus”, observa. Estas não são, no entanto, o epílogo: “Jesus cai sob o peso da cruz, mas não fica lá esmagado”, escreve Bassetti na III Estação, “Cristo está lá, descartado entre os descartados. Último com os últimos. Náufrago entre os náufragos. Deus se encarrega de tudo isso. Um Deus que por amor renuncia a mostrar a sua omnipotência. Mas também assim, precisamente assim, caído em terra como um pequeno grão, Deus é fiel a si mesmo: fiel no amor”.

E Deus – destaca o prelado na IV meditação – “suja as suas mãos com os nossos pecados e as nossas fragilidades”. Com o nosso sofrimento, aquele que quando toca na nossa porta, nunca é esperado. Aparece sempre como uma constrição, talvez até mesmo como uma angústia” e que “pode encontrar-vos dramaticamente despreparados”.

Como por exemplo uma doença que “poderia arruinar os nossos planos de vida.” “Uma criança com deficiência – diz Bassetti – poderia perturbar os sonhos de uma maternidade tão cobiçada. Aquela tribulação não querida toca, porém, fortemente o coração humano”. Então, “como lidamos com o sofrimento de um ente querido? Como estamos atentos ao grito de quem sofre mas vive distante de nós?”.

Precisamente a V meditação, que retrata a cena em que Simão de Cirene ajuda Cristo a levar a cruz, oferece a resposta. “O cireneu – sugere o cardeal – nos ajuda a entrar na fragilidade da alma humana e ilumina um outro aspecto da humanidade de Jesus. Até mesmo o Filho de Deus precisava de alguém que o ajudasse a carregar a cruz”. O Cireneu é, portanto, “a misericórdia de Deus que se manifesta na história dos seres humanos”. Quem se faz presente também nos momentos mais escuros, nos pecados mais mesquinhos, porque Ele “não se envergonha. E não nos abandona”.

Deus, escreve o arcebispo da umbria na VI meditação, “se manifesta sempre como um socorrista corajoso”. De quem? De todos, em particular “dos milhões de refugiados e pessoas deslocadas que fogem desesperadamente do horror das guerras, das perseguições e das ditaduras”. “Como não ver o rosto do Senhor” nos seus rostos?

“Faces desfiguradas pelas aflições da vida” – observa Bassetti – que “nos vêem ao encontro”, mas nós, “muitas vezes olhamos para o outro lado”. Porque “somos instintivamente inclinados a fugir do sofrimento, porque o sofrimento não agrada”. A Via Sacra nos coloca diante do gesto da Verónica: “O amor, que esta mulher encarna, nos deixa sem palavras”, reflecte o cardeal, “o amor a torna forte para desafiar os guardas, para superar a multidão, para aproximar-nos do Senhor e realizar um gesto de compaixão e de fé: parar o sangramento das feridas, enxugar as lágrimas da dor, contemplar aquele rosto desfigurado, atrás do qual está escondida a face de Deus”.

De grande impacto a X reflexão na qual o prelado comenta o momento em que Jesus foi despojado das roupas. “Aquele corpo que o Pai ‘preparou’ para o Filho” é “desprezado, zombado e torturado”; nele, porém, “cumpre-se a divina vontade de salvação de toda a humanidade”, nesse se expressa “o amor do Filho pelo Pai e o dom total de Jesus aos homens”.

Na IX meditação o cardeal fala das crianças que sofrem “por uma família despedaçada”. Junto com elas sofrem muitos homens e mulheres que “caem”, que “pensam não ter dignidade porque não trabalham”. Ou talvez tantos jovens que, “obrigados a viver uma vida precária”, “perdem a esperança pelo futuro”.

“O homem que cai e contempla Deus que cai, é o homem que finalmente pode admitir a própria fraqueza e impotência sem mais temor e desespero, precisamente porque também Deus experimentou no seu Filho”, acrescenta o cardeal. Por misericórdia, “Deus abaixou-se” até “deitar-se na poeira da estrada”. Poeira – destaca Bassetti – molhada com o suor de Adão e pelo sangue de Jesus e de todos os mártires da história; pó abençoado pelas lágrimas de tantos irmãos pela violência e a exploração do homem pelo homem”.

“A este pó abençoado, ultrajado, violado e depredado pelo egoísmo humano, o Senhor reservou o seu último abraço”. O mesmo abraço que deu a um dos dois ladrões, provavelmente dois assassinos, referidos na XI estação, mostram o “coração de cada homem porque indicam dois modos diferentes de estar na cruz”, explica o cardeal.

“O primeiro amaldiçoa a Deus; o segundo reconhece Deus naquela cruz. O primeiro ladrão propõe a solução mais cómoda para todos. Propõe uma salvação humana e tem um olhar dirigido para baixo. A salvação para ele significa escapar da cruz e eliminar o sofrimento”. Esta é “a lógica da cultura do descarte” que “pede para Deus eliminar tudo o que não é útil e não vale a pena ser vivido”.

O segundo malfeitor, no entanto, “não busca uma solução”, mas “propõe uma salvação divina e tem um olhar todo dirigido ao céu. A salvação para ele significa aceitar a vontade de Deus também nas piores condições”. Assiste-se, assim, neste caso, o “triunfo da cultura do amor e do perdão”, a “loucura da cruz com relação à toda sabedoria humana só pode desvanecer e emudecer no silêncio”.

Este silêncio é quebrado pelo “grito de Jesus” que “é o grito de todo crucifixo da história, do abandonado e do humilhado, do mártir e do profeta, de quem é caluniado e injustamente condenado, de quem é exilado ou está na prisão”. “É o grito do desespero humano que desemboca na vitória da fé que transforma a morte na vida eterna”.

Jesus morre na cruz, mas é essa “a morte de Deus”? “Não”, afirma o cardeal, “é a celebração mais alta do testemunho da fé”. Aquele mesmo testemunho de “luz imensa” manifestado nos vários mártires que povoaram o XX século como Maximiliano Kolbe e Edith Stein, e que ainda hoje se faz presente no século XXI em todos os “apóstolos do mundo contemporâneo”, em que “o corpo de Cristo é crucificado.”

“Na grande escuridão acende-se a fé”, destaca o arcebispo de Perugia. E na XIV reflexão dirige-se directamente a Deus: “O homem – escreve – ofuscado pela luz que tem a cor das trevas, impulsionado pelas forças do mal, rolou uma grande pedra e te trancou no sepulcro. Mas nós sabemos que tu, Deus humilde, no silêncio em que a nossa liberdade ti colocou, estás trabalhando duramente para gerar nova graça no homem que amas”.


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