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sábado, 27 de junho de 2015

Os documentos conciliares e a autoconsciência histórica dos cristãos

Um ponto de partida e uma base para a releitura do compromisso católico na sociedade contemporânea, em torno do binómio pesquisa-verdade

Roma, 26 de Junho de 2015 (ZENIT.org) Staff Reporter

Apresentamos a seguir um resumo da palestra ministrada por Renata Salvarani, professora de História do Cristianismo e História Medieval, durante o XII Simpósio Internacional de Professores Universitários (Roma, 25 a 27 de junho de 2015), sobre “História do cristianismo e autoconsciência histórica no contexto do Concílio Vaticano II”.

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Impõe-se uma reflexão sobre o papel da história do cristianismo e sobre a autoconsciência histórica para os cristãos de hoje, cinquenta anos após o encerramento do concílio que, com maior evidência, quis enfatizar a dimensão do “ser no tempo” – dentro do tempo – da Igreja e da própria Salvação.
 

As elaborações dos padres conciliares, nos documentos finais, empregam fios que teceram os desenvolvimentos filosóficos do século passado, fazendo com que a mudança e a consciência do devir se tornasse a figura de um clima cultural ocidental que, naqueles anos, se abria para incluir mais diversidade em uma dimensão global. Isso, para nós, é um legado a ser valorizado e um estímulo a desenvolver estudos que destaquem, na concretude dos eventos, o dinamismo cristão e as suas implicações no seio das sociedades.
 

Alguns documentos do concílio, em particular, destacam a centralidade da história e da autoconsciência histórica para os cristãos e para o próprio cristianismo. Aspecto histórico e aspecto escatológico são afirmados, de fato, como dois componentes essenciais da realidade do povo de Deus, da sua própria existência. A ambas as dimensões corresponde a consciência da Igreja.
 

O capítulo I da constituição “Lumen Gentium” expressa claramente que a consciência da salvação está ligada, na fé da Igreja, não só à própria existência de Deus na sua transcendência, ou ao seu apelo dirigido ao homem, mas especialmente à "vinda" de Deus até o homem, até a comunidade humana. Esta vinda tem um caráter histórico, especialmente no sentido de que se realizou e se realiza incessantemente no curso da história da humanidade. A contínua inserção da Igreja na história humana foi apresentada pelo concílio com perspicácia, tanto em relação às pessoas quanto aos povos e nações. É igualmente claro que a universalidade da Igreja é toda permeada pela consciência histórica.
 

A “Gaudium et Spes” afirma que a consciência da Igreja como Povo de Deus é "histórica": "A Igreja, procedendo do amor do eterno Pai, fundada por Jesus Cristo Redentor, reunida no Espírito Santo, tem uma finalidade salvífica e escatológica que não pode ser plenamente atingida a não ser no mundo futuro. Ela já está presente neste mundo e é composta de homens, que são, de fato, membros da cidade terrena, chamados a formar, já na história da humanidade, a família dos filhos de Deus, que deve crescer constantemente até que venha o Senhor". A constituição destaca que, para a história da salvação, é importante o curso da história em si: "Segue-se uma aceleração tal da história que dificilmente pode ser seguida por homens individuais. Único se torna o destino da sociedade humana, sem mais se diversificar em muitas histórias separadas. O género humano passa, assim, de uma concepção estática da ordem para uma concepção mais dinâmica e evolutiva; isto favorece o surgimento de um conjunto formidável de novos problemas, que estimula novas análises e sínteses".
 

Também na “Dei Verbum” a salvação tem sua própria história no povo de Deus. A "vinda" de Deus decide a salvação também na dimensão histórica e é, acima de tudo, uma revelação de si mesmo por parte de Deus. Deus então fala aos homens como amigos. Estes homens são "históricos" ​​no sentido de que cada um tem a própria história individual e, ao mesmo tempo, cada um participa das histórias das várias sociedades e da história de toda a família humana.
 

Estão intimamente ligados a este conceito o caráter universal da Igreja e a necessidade do seu anúncio dentro de todas as culturas: a história da salvação passa através das almas humanas, mas encontra a sua expressão também em várias comunidades; mais ainda: torna-se história dessas comunidades.
 

O resultado é uma importância emergente do estudo da história do cristianismo, como análise objetiva dos eventos em que se verificou a inserção da mensagem evangélica dentro das transformações das sociedades ao longo do tempo.
 

A apresentação mais explícita do tema está no decreto “Ad Gentes”, sobre a atividade missionária da Igreja.
 

A “Nostra Aetate”, que é o texto conciliar de elaboração mais complexa, esboçado ainda em 1961, evidencia a importância da autoconsciência histórica do percurso da salvação em relação com a historicidade da ligação entre o cristianismo e o judaísmo.
 

O breve texto da “Perfectae Caritatis”, emanado para exortar a renovação das comunidades e das ordens religiosas, se refere à necessidade de aprofundar o conhecimento dos fundadores para manter vivo o seu carisma e os respectivos percursos para enriquecer a sua presença no mundo contemporâneo.
 

A partir dessas premissas magisteriais, a leitura e releitura do concílio, nos últimos cinquenta anos, religou os fios do debate pós-Segunda Guerra Mundial sobre a hermenêutica da história, sobre as filosofias da história, sobre a teologia da história.
 

Henri Irene Marrou retoma as questões críticas dos estudos sobre o compromisso moral e político do historiador na “Teologia da História” (primeiro em 1968, depois em 1979) e na “Nova História da Igreja” (1970), que faz referência explícita à lição conciliar tanto no geral quanto, em particular, nas menções à colegialidade e à globalidade.
 

“Le Paysan de la Garonne”, que Jacques Maritain publicou em Paris em 1966, se apresenta como uma reflexão sobre questões ainda abertas e bem presentes depois do concílio ecuménico: laicidade, papel da cultura europeia e, especialmente, a relação entre a pesquisa e a verdade, binómio irrenunciável para encarar com consciência e autoconsciência a pós-modernidade e as suas contradições. Nesta perspectiva, o conhecimento histórico emerge como necessidade central.

Luigi Giussani, a partir do ensaio sobre Reinhold Neibuhr e especialmente em “O Compromisso do Cristão no Mundo” (1971), fez da entrada do "fato" de Cristo no tempo e na história o pivô das suas elaborações teológicas, fundando nele a dimensão moral do cristão, a dimensão do anúncio e a centralidade da Igreja-comunidade no mundo de hoje.


Karol Wojtyla, que tinha participado nos trabalhos do concílio como administrador capitular da arquidiocese de Cracóvia, no ensaio “Junto às Fontes da Renovação”, dedicada à definição de uma hermenêutica do Vaticano II em perspectiva espiritual e não política de dialética entre duas frentes internas, reserva um capítulo inteiro à importância da autoconsciência histórica do cristão a respeito do seu agir no mundo e da perspectiva escatológica do seu ser, como pessoa e como Igreja.


Esses textos, bem como os desenvolvimentos críticos a eles relacionados, são o nosso ponto de partida e a nossa base de releitura do compromisso do historiador cristão na sociedade contemporânea, em torno do binómio pesquisa-verdade e da questão do papel da cultura europeia no mundo globalizado.



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