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quarta-feira, 25 de março de 2015

Francisco fala às periferias humanas

Um balanço de dois anos de pontificado


Roma, 24 de Março de 2015 (Zenit.org) Bruno Forte


Neste recente dia 13 de Março, o papa Francisco entrou no seu terceiro ano de pontificado, solenemente inaugurado com a celebração eucarística de 19 de Março de 2013. Nestes dois anos, houve inúmeros gestos e mensagens com os quais ele tem unido tradição e renovação, fidelidade à identidade da Igreja e abertura ao sopro sempre novo do Espírito de Deus.

Embora eu ache impossível fazer um balanço exaustivo, parece-me que três pares de expressões podem ajudar a compreender a novidade e a profundidade do que este papa vindo "quase do fim do mundo" está transmitindo ao povo crente e a toda a família humana. O primeiro par contrapõe à atitude da auto-referência o programa de uma Igreja "de saída": auto-referente é quem se coloca no centro de todas as relações, e este seria o caso de uma Igreja que buscasse a própria afirmação e interesse e não a glória de Deus e a salvação dos homens.

Igreja "de saída" é aquela que se projecta para o Senhor, que se dispõe a celebrar a sua primazia na escuta obediente e na adoração, voltando-se, ao mesmo tempo, aos homens, às suas necessidades mais profundas, ao serviço da sua salvação eterna. As razões pelas quais a Igreja é chamada a estar sempre "de saída" residem principalmente no mandamento de Jesus, que envia todos os que crêem nele a levar ao mundo a alegria da boa notícia: "Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura" (Marcos 16,15).

Há, depois, a urgência que arde no coração dos que encontraram o Senhor e que os deixa sempre prontos para falar dele, mostrando o motivo da esperança que eles têm e agindo com a paixão da caridade, em especial para com os humildes e os pobres. Finalmente, o que põe em andamento a “saída missionária” é a necessidade de luz e salvação dos homens, manifestada na imagem forte e concreta usada com frequência por Francisco: as “periferias”, tantas vezes esquecidas ou negligenciadas, que convocam a atenção e o compromisso de quem tem o dom da fé.

As "periferias" mencionadas pelo papa são principalmente geográficas, relacionadas com as populações ainda não evangelizadas e que estão fisicamente distantes do coração pulsante da comunidade eclesial. No entanto, pode-se viver em países de antiga tradição cristã, lado a lado com cristãos fervorosos ou a uma curta distância de igrejas e de centros de vida litúrgica e de caridade, mas sem conhecer o Senhor ou até inteiramente privados, por responsabilidade própria ou de terceiros, da percepção da beleza do seu amor e da importância de conhecê-lo e experimentá-lo. São as "periferias existenciais": elas vão dos assim chamados "distantes", que muitas vezes receberam um primeiro anúncio da boa nova e depois se afastaram da fé por causa das vicissitudes da vida ou do testemunho pouco ou nada credível dos crentes, até os escondidos buscadores de Deus, que experimentam no coração o almejo do Totalmente Outro, mas não sabem como contemplar o seu rosto e receber o dom do amor divino.

Junto com estes, estão aqueles que, com plena consciência, rejeitaram o horizonte da fé por considerá-lo ingénuo, desconfortável ou alienante. Se olharmos para a elevadíssima parcela dos que não costumam participar da vida sacramental, a amostragem das "periferias existenciais" da fé se mostrará facilmente em toda a sua variedade e complexidade. São pessoas "distantes", é verdade, mas, aos olhos de quem acredita, são amadas pelo Senhor, que morreu e ressuscitou também por elas: elas são sempre objeto da infinita misericórdia do Pai celeste, alcançadas pelo sopro do Espírito, que atrai o seu coração para Deus.

Levar a boa notícia a essas "periferias" é a tarefa da Igreja "de saída", que não fica satisfeita com o "pequeno" e com o "próximo", e sim percebe a necessidade urgente de compartilhar ao máximo e com todos o dom recebido do alto, com entusiasmo e generosidade.

O segundo par de expressões caras ao papa Francisco une por contraste a "cultura do descarte" à ideia de uma Igreja "pobre e para os pobres". Disse o pontífice, na audiência de 12 de Janeiro, ao corpo diplomático credenciado junto à Santa Sé: “Há um tipo de descarte que leva a não ver o próximo como um irmão que precisa ser acolhido; a deixá-lo fora do nosso horizonte pessoal de vida, a transformá-lo num concorrente, num súbdito a ser dominado. É uma mentalidade que gera aquela ‘cultura do descarte’ que não poupa nada nem ninguém, das coisas aos seres humanos e até mesmo ao próprio Deus. Dela nasce uma humanidade ferida e continuamente lacerada por tensões e conflitos de todo tipo”. Segue-se disto a trágica realidade que Francisco definiu como "uma verdadeira guerra mundial combatida por partes". A esta situação, o papa não contrapõe nenhuma ideia de poder mundano capaz de apresentar uma solução.

Mesmo chamando os povos e indivíduos à responsabilidade pelo que está acontecendo, Francisco vê como decisivo o testemunho de pobreza que a Igreja pode dar, baseada no seguimento de Cristo pobre e na confiança alicerçada não nos meios humanos, mas na fé em Deus. "Ah, como eu desejo uma Igreja pobre e para os pobres!", foi a exclamação, tantas vezes citada, que lhe saiu dos lábios durante a reunião com representantes da media em 16 de Março de 2013, ao relembrar as razões que o levaram a escolher o nome Francisco. Pobre é uma Igreja que considera como sua única riqueza a fé no Senhor e o dom do seu amor. Essa Igreja é "para os pobres" quando, rejeitando toda lógica de grandeza mundana e de poder, se dispõe a lutar pela dignidade de toda a pessoa em cada pessoa.

É assim que, recusando a lógica egoísta do descarte, ela se põe como um sinal em favor da gratuitidade, o dom de si como forma autêntica de relação humana, única possibilidade revolucionária diante dos cálculos de opressão que envenenam as mentes e as fazem resvalar para o conflito e para a lei impiedosa da força.

Por fim, o papa Francisco tem muitas vezes falado de uma "globalização da indiferença", resultado planetário da "cultura do descarte" e do domínio do interesse egoísta do indivíduo ou de grupos: a ela, o papa contrapõe o Evangelho da misericórdia. Como já se vislumbrava na homilia da abertura do pontificado, misericórdia é cuidar do outro como Deus cuida de nós. A vocação de cuidar não cabe apenas a nós, cristãos; ela tem uma dimensão que precede e que é simplesmente humana, cabendo a todos.

É cuidar de toda a criação, da beleza da criação, como nos é dito no livro do Génesis e como foi demonstrado por São Francisco de Assis: é ter respeito por toda criatura de Deus e pelo ambiente em que vivemos. É cuidar das pessoas, cuidar de todos, de toda pessoa, com amor, especialmente das crianças, dos idosos, daqueles que são mais frágeis ​​e que, tantas vezes, estão na periferia do nosso coração. É cuidar uns dos outros na família: os cônjuges cuidando-se entre si, cuidando dos filhos como pais e, com o tempo, os filhos tornando-se cuidadores dos seus pais.

É viver com sinceridade as amizades, que são um mútuo cuidar-se na confiança, no respeito e no bem (cf. 19 de Março de 2013). O primeiro "cuidador" de todos, com a ternura do seu amor, é o Deus vivo, tal como apresentado pela fé bíblica: "O Senhor é quem te guarda, o Senhor é a tua sombra à tua direita" (Salmo 121,5). Cuidados pelo Deus misericordioso, acolhidos pelo seu perdão, aprendemos a cuidar uns dos outros com misericórdia: esta é a experiência que Francisco propõe à Igreja e ao mundo e que ele pretende colocar no centro da vida e da missão do povo de Deus com o Jubileu recém-anunciado, que começará em 8 de Dezembro de 2015, quinquagésimo aniversário do encerramento do Concílio, e durará até a Solenidade de Cristo Rei, em 20 de Novembro de 2016.

Um ano santo para converter os corações da globalização da indiferença ao cuidado misericordioso do amor. Uma boa notícia e, ao mesmo tempo, um desafio para todos, e só quem vive a experiência profunda do amor misericordioso de Deus sabe o quanto isto é decisivo para o futuro da humanidade: e o papa Francisco é uma voz cheia de credibilidade e de autoridade no tocante a esta experiência.

(Publicado originalmente, em italiano, no jornal “Il Sole 24 Ore”, domingo, 22 de Março de 2015, páginas 1 e 10)

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