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quarta-feira, 27 de agosto de 2014

De imigrante sem papéis na balsa a padre em Múrcia: a história do padre Kenneth Iloabuchi

Prometeu entregar-se a Deus numa tormenta no Estreito 

O padre Kenneth é hoje sacerdote da diocese de Cartagena-Múrcia e
colabora com Ajuda à Igreja Necessitada
Actualizado 20 de Julho de 2014

Portaluz /OMP / ReL

Na remota localidade nigeriana de Adazi Nnukwu, um grupo de jovens viam pela televisão imagens de um país europeu que nos seus sonhos ansiavam alcançar para escapar da pobreza.

O Reino Unido foi para muitos jovens de África o destino ansiado. O Gabinete Nacional de Estatística britânico, informa que são 174.000 os nigerianos que hoje tem residência legal no país.

Entre esses jovens, frente ao televisor, estava Kenneth Chukwuka Iloabuchi. Era apenas um adolescente, que próximo a finalizar o ensino secundário fantasiava com os seus amigos como seria estudar Direito em Londres.

Com o seu pai falecido quando ele tinha oito anos, Kenneth sentia o peso de ajudar a sua família. Foi assim que ao cumprir em 1997 os 18 anos expôs à sua mãe o plano. Era ele o mais novo dos sete irmãos e ainda que ela resistiu a deixá-lo marchar, Kenneth estava decidido.

“A minha mãe disse-me: «O que desejo é a tua felicidade, assim que, se queres ir, conta com o meu apoio». Assim, com um amigo procurámos informação numa agência de viagens. Obter um visto desde a Nigéria era impossível. A recomendação foi que viajássemos a Marrocos, pois desde ali poderíamos entrar facilmente em Espanha, onde devíamos tomar o comboio para a França e depois cruzar até Inglaterra”.

A viagem, supostamente "fácil", a Espanha
A família recolheu algum dinheiro e o jovem nigeriano, com o seu amigo, saiu rumo a Lagos, cidade portuária da Nigéria.

O trajecto até Reino Unido parecia-lhe simples segundo o tinham exposto os da agência... “Disseram-nos que era muito fácil entrar em Espanha; além disso explicavam-nos que ali necessitava-se de pessoas que trabalhassem no campo, com o qual tínhamos a entrada assegurada sem muito controlo”.

Esperaram uns dias em Lagos até obter o visto de entrada em Marrocos e em Setembro de 1997 chegaram a Casablanca. Ali começou a mostrar o seu rosto a crua realidade.

“Cruzar a fronteira era muito, muito difícil” - recorda o emigrante Kenneth -, pelo que devia permanecer os seguintes dois anos vivendo como podia na cidade marroquina. 

Nas ruas do Magrebe
“Estava na rua, sem tecto, não havia ninguém. Muitos dias comíamos só pão e água. Para poder sobreviver dizíamos um ao outro que passe o que se passe, sobreviveríamos a esta situação, mas no fundo sentíamos que não havia esperança e custava-nos”.

Esgotado decidiu regressar com a sua família, mas os conflitos diplomáticos que enfrentavam esses dias Marrocos e a Nigéria impediam-no.

Numa tentativa desesperada mudou-se para Tânger para tentar entrar em Ceuta (território espanhol) cruzando a fronteira a pé.

A Guarda Civil das fronteiras o deteve-o e devolveu-o até terra africana.

Para pior dos males os guardas marroquinos que o receberam rasgaram o seu passaporte e ficou parado, sem existência legal, recluído num centro de detenção. Neste périplo tinha perdido também o rasto do seu amigo.

Recluído esteve só quinze dias. A noite, os golpes, o fechar num camião que parecia herança da segunda guerra mundial, junto a dezenas de outros imigrantes como ele, foram abandonados à sua sorte, de madrugada, em pleno campo na fronteira com a Argélia... “«Yala, yala» (vamos, vamos), disseram-nos, e foram-se”.

Vagando pela Argélia, voltando a Marrocos
Caminharam até ao nascer do sol, eram quase sessenta pessoas de várias nacionalidades e então no horizonte desenharam-se as formas de uma cidade argelina... Orán. Ali o jovem nigeriano voltou a padecer por oito meses nas ruas.

Mas o sonho de estudar em Londres que abrigava devolveu-o outra vez à aventura de tentar alcança-lo. E refez pelo deserto o caminho, regressando até Marrocos. Três semanas de inferno…

“Levávamos mais de quatro dias sem comida nem água, quando chegámos a um sítio onde um rapaz me fez sinais de que não podia caminhar mais… Não alcancei ninguém, desmoronou-se fechou os seus olhos e morreu. Apenas tínhamos forças e o sepultámos na areia. Só Deus podia salvar-nos e aferrei-me a ele”.

A balsa, o mar e a tormenta
Kenneth finalmente conseguiu chegar a Marrocos e depois receber dinheiro que lhe enviou a sua família pagou o seu direito a estar numa “balsa” rumo a Espanha.

“Depois de mais de quatro horas navegando num mar ameaçante escutei prantos e gritos da outra “balsa” cujo motor se deteve… Voltaram-se e todos morreram. Eu só rezava e então prometi a Deus que se me resgatava vivo me entregaria ao seu serviço. Como? Não o sabia, mas o que me importava naquele momento era a minha vida, não ir estudar Direito para Inglaterra. Fomos resgatados pela Guarda Civil espanhola que nos encarcerou em Algeciras”. 

Fugido por Espanha, trabalhador, com namorada
Depois de umas semanas internado, um juiz deu-lhe 48 horas para sair de Espanha. Mas Kenneth tomou um autocarro e fugiu para Múrcia.

Nos seguintes dois anos, trabalhou na construção e no campo, teve uma namorada… E pouco ou nada recordava do seu anseio por estudar Direito em Londres.

Falava com a minha mãe que me perguntava sempre: «Vais à Igreja?». Para que não se zangasse mentia-lhe e ela insistia… «Filho, ainda que te custe, tens que ir, te ajudará também para aprender o idioma», dizia para convencer-me”.

O padre que lhe fez rezar
Foi uma manhã de domingo do ano de 2002 que foi à missa na paróquia de Santo André em Múrcia e sentou-se no fundo.

“Logo, o padre chamou-me diante de todos e disse-me: «Ouve, vem aqui. Falas espanhol?», «Não», respondi-lhe, e convidou-me a sentar-me diante e rezar no meu dialecto, porque a Igreja é universal, disse”.

Esse era o início de uma plantação do pároco, Jesús Avenza, que ao longo de dois anos daria frutos no jovem.

“Este sacerdote para mim foi um testemunho. Depois de mais de dois anos vendo a sua vida, recordei a promessa que fiz na ´balsa´ e preparei-me para ir falar com ele. Convidou-me a rezar e um ano depois apresentou-me ao reitor do seminário. Depois de dois anos de discernimento a pregação de um sacerdote abriu os meus olhos… «Tens medo?, a tu vida não é tua; deixa Deus actuar nela». Decidi dar um passo mais e chamei a minha namorada para dizer-lhe que ia ser sacerdote… «Se é a vontade de Deus, não tenho problema», disse-me”. 

Kenneth foi ordenado em Setembro de 2013. Actualmente acompanha duas comunidades e anima a fé entre os imigrantes que deambulam por Múrcia. Adazi Nnukwu, o amigo que escapou com ele da Nigéria, licenciou-se em Inglaterra. Kenneth encontrou o sentido e paz que por tanto tempo anseio. “Sem voltar a nascer, seria sacerdote de novo, com a ajuda de Deus… Na Igreja encontrou uma família. Há muita gente de Deus que está dando a sua vida para melhorar a vida dos demais. «Grátis recebeste-o, entrega-o grátis», disse o mesmo Senhor”.


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