Páginas

quarta-feira, 26 de março de 2014

Ver o invisível

1. Descobrir o essencial
Num encontro em que os participantes narravam experiências fortes da sua vida, alguém lembrou a famosa frase do Principezinho de Saint Exupéry: o essencial é invisível aos olhos, pois só se vê bem com o coração. Como se tratava de exprimir uma experiência religiosa profunda, parafraseou a expressão, dizendo que apenas se vê bem o essencial da vida com os olhos de Cristo.

Na realidade em muitas situações, embora estando todos a ver as mesmas coisas, nem todos as vêm, sentem, interpretam e vivem do mesmo modo e com igual intensidade. O amor é importante para compreendermos o outro e nos interessarmos por ele, mas o sentimento, a emoção podem até ofuscar a verdade dos acontecimentos, colocando-nos numa relação muito subjetiva que nem todos partilham. Até se costuma dizer que a paixão cega e até pode fazer perder o sentido da realidade e conduzir a atos de loucura. Levar-nos-ia longe analisar certos procedimentos de pessoas apaixonadas e ciumentas, que ficam cegas e surdas à voz da razão. Conheço casos de suicídio e de homicídio por amores não correspondidos.
 
O que significa então ver o essencial com os olhos de Deus? Como adquirimos este olhar divino e como se exprime nos comportamentos e atitudes de quem o adquiriu?
 
Os filósofos sempre apresentaram teorias do conhecimento muito diversas, tendo dificuldade em admitir uma razão e um juízo puro, sem qualquer preconceito ou prejuízo. Mas parecem unânimes em afirmar que precisamos de purificar o nosso olhar, os nossos sentidos, libertar-nos do sentido da posse das coisas, relacionando-as com os nossos interesses, desejos e apetites, para as ver e contemplar em si mesmas, na sua entidade e beleza própria.

Também me ocorre umas palavras de Jesus, quando explicava aos discípulos o sentido de algumas parábolas e afirmava que muitos têm olhos e não vêm, ouvidos e não ouvem. Como os apóstolos também nós precisamos de pedir a Jesus a sua visão, a sua maneira de se relacionar com as coisas e as pessoas, para as ver como Ele e criar com elas uma relação de conhecimento contemplativo, respeitador do que são em si mesmas, com a sua dignidade e beleza, e não tanto no sentido de como elas nos são úteis.

Para entender isto melhor, vou fazer uma breve meditação sobre o evangelho do quarto domingo do tempo da Quaresma, que nos ajudará também a entender um pouco da bem-aventurança proclamada por Jesus: bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus.

2. Cura da cegueira
Estas considerações surgiram espontâneas na minha mente ao ler os textos bíblicos propostos para a liturgia do quarto domingo da Quaresma. Primeiro, o profeta Samuel, enviado para ungir um dos oito filhos de Jessé como rei de Israel, é advertido para não se deixar fascinar pelas aparências, pois Deus vê o coração. Na realidade foi o mais novo, que andava a apascentar o rebanho, David, que Deus escolheu como rei.

E no evangelho lemos a cura do cego de nascença através de alguns gestos de Jesus, que passa a ver na pessoa de Jesus o Ungido, o Messias, o Salvador prometido, enquanto os fariseus se obstinam na condenação de Jesus como um pecador e hereje. O cego, pela fé, passa a ver o essencial da pessoa que o curou, exclamando prostrado de joelhos: Eu creio, Senhor. Enquanto os que tinham olhos e conheciam as escrituras, segundo as quais o Messias estava para vir, não viram, ficaram ainda mais cegos, ou melhor, porque viam tudo a partir de si mesmos, não sentiam necessidade de quem lhes abrisse os olhos para o essencial. Por isso ficaram cegos, enquanto o cego passou das trevas para a luz da verdade, da justiça, da bondade, da comunidade que dá glória a Deus e começa a ver o mundo e a sua vida com os olhos do Criador. 

Os cristãos e aqueles que o desejam ser, discípulos de Cristo a partir do batismo, preparam-se na Quaresma para, de coração e olhar purificado, verem o mundo e a sua vida com os olhos de Jesus, na alegria da ressurreição. Quem assim contempla o caminho de Jesus, que, sem medo, corajosamente, perdoa aos seus inimigos e por todos entrega a sua vida, começa a ver os acontecimentos e a vivê-los na feliz esperança da vitória da vida sobre a morte, do perdão sobre o pecado, da alegria sobre o desespero de uma vida de olhar narcisíaco, voltado para a própria sombra e imagem, sem Redentor. 

† António Vitalino, Bispo de Beja

Nota semanal em áudio:



Sem comentários:

Enviar um comentário